Por Oscar Valporto, compartilhado de Projeto Colabora –
Após suspensão de operações policiais no Rio de Janeiro, estudo constata queda no número de mortes violentas e também de outros crimes
Proibir o uso do helicóptero como plataforma de tiro; restringir a casos de “absoluta excepcionalidade” operações policiais perto de escolas, creches e unidades de saúde; tornar obrigatória a presença de ambulância e profissionais de saúde nas operações policiais; proibir mandados de busca e apreensão domiciliar coletivos ou genéricos; ter promotores de plantão para atender demandas sobre o controle externo da polícia fluminense. Estas e outras mudanças no trabalho da polícia do Rio de Janeiro podem ser determinadas pelo STF com o julgamento – a partir desta sexta (07/08) – das medidas cautelares solicitadas na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 635, a mesma ação na qual o Supremo, por larga maioria (9×2), manteve suspensas as operações policiais em favelas durante a pandemia de covid-19.
O plenário confirmou, nesta terça (04/08), decisão liminar do ministro Edson Fachin, emitida no dia 5 de junho ao analisar pedido de “tutela de urgência” dos responsáveis pela ADPF após a morte do estudante João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, durante operação conjunta da Polícia Civil do Rio e da Polícia Federal, em São Gonçalo, na Região Metropolitana. Estudo desenvolvido pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF) indica uma redução de 56% nos tiroteios/disparos de arma de fogo no período entre 5 de junho, data da decisão de Fachin, até 5 de julho, em comparação com a média observada dos registros no mesmo período dos anos de 2017 a 2019. A quantidade de mortos e feridos durante ações policiais também teve queda neste período: foram 72,5% de mortos e 49,6% de feridos a menos em relação aos anos anteriores. Houve queda também – de 71,5% – no número de tiroteios com a participação de agentes de segurança. “Nos primeiros 31 dias de vigência da liminar proferida pelo Ministro Fachin, houve redução significativa do número de operações policiais que foi acompanhada de uma diminuição do número de mortes violentas, de feridos e de ocorrências criminais”, aponta o relatório dos pesquisadores da UFF.
Ainda mais significativos são os dados criminais durante o período do mês de junho de 2020, na comparação com a média de igual período entre 2007-2019. Os pesquisadores, com a análise dos dados oficiais do Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ), concluem que “a diminuição das operações policiais e a consequente redução no número de mortos e feridos em operações policiais foi acompanhada de uma diminuição da criminalidade”. Os números indicam uma queda de 47,7% dos crimes contra a vida e, particularmente nos casos de homicídios dolosos, uma diminuição de 39,9%. Também foi registrada redução em 39,0% nos crimes contra o patrimônio – em particular de 32,1% nos casos de roubo de veículos.
Essa queda nos números de mortes violentas com a suspensão das operações policiais nas favelas reforça a crítica dos especialistas à política de segurança pública baseada no confronto, que, historicamente, vem sendo implementada no Rio de Janeiro. Foram os incentivos à ação policial violenta do governador Wilson Witzel que motivaram a APDF 635, impetrada pelo PSB, com apoio da Defensoria Pública, de entidades comunitárias, como a Redes Maré, de famílias de vítimas da violência policial e de instituições de pesquisa em segurança. A ação no Supremo foi apresentada em novembro quando a polícia do Rio já se encaminhava para alcançar o recorde de 1810 mortes em confronto, estabelecido em 2019. “A APDF é anterior à pandemia: ela questiona os métodos usados no combate à criminalidade e seus trágicos resultados nos últimos anos. Quando a pandemia começou, as mortes pela ação policial começaram a disparar e foi feito o pedido em caráter de urgência de liminar”, explica Renata Neder, pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, que está acompanhando a tramitação da ação no Supremo.
A ABDF aponta que a política estadual de segurança apresenta crescentes casos de letalidade nas ações policiais e viola tratados internacionais e preceitos fundamentais da Constituição Federal, como o direito à vida e à inviolabilidade do domicílio. Como julgamentos destas ações costumam demorar, a inicial solicita ao STF 17 medidas cautelares. “Não há como aguardar o julgamento definitivo da ação para imposição das medidas postuladas. Até lá, terão ocorrido talvez milhares de mortes evitáveis”, destaca a petição inicial. “O estudo feito pelo Geni/UFF é mais uma prova que essa política, além de provocar mortes e mais mortes, é completamente ineficaz no combate à violência”, frisa a pesquisadora Renata Neder.
Menos ação policial, menos mortes e menos crimes
Enviado para o STF e divulgado na véspera do começo do julgamento da liminar pelo STF, o levantamento do Geni/UFF, para avaliar o impacto da decisão de Fachin na ADPF 635, utilizou os dados referentes aos 31 dias que sucederam o deferimento da medida cautelar – 05/06 a 05/07 de 2020 – e os comparou aos períodos correspondentes em anos anteriores da série histórica que tem início em 2007. Foram comparados o número médio, estimado e notificado de operações, mortos e feridos para avaliar o impacto da liminar, assim como as mortes por intervenção de agentes do Estado. “Os dados indicam a ineficiência das operações policiais no controle do crime e a efetividade do deferimento do pedido de tutela provisória na ADPF 635 em preservar vidas”, afirma o relatório do grupo.
A pesquisa constatou uma redução de 78% nas operações realizadas no período em relação à média dos anos anteriores e redução de 75 % em relação à estimativa para 2020, seguindo o cálculo de tendência. O relatório dos pesquisadores destaca ainda que, como resultado da diminuição da quantidade de operações policiais, houve, entre 5 junho e 5 de julho de 2020, redução de 49,6% em relação à média de feridos e de 69% em relação à estimativa de feridos para 2020 – usando o mesmo o cálculo de tendência. O número de feridos também caiu ao menos pela metade, reforçando a relação entre a quantidade de operações e de feridos. Com relação aos mortos, houve, no mesmo período, uma redução 72,5% dos óbitos decorrentes de operações policiais em relação à média de mortes no mesmo período entre 2007 e 2019 e redução de 77% de mortos em relação à estimativa para 2020, com o cálculo de tendência.
Para os pesquisadores, a medida liminar conseguiu êxito ao preservar vidas. “Caso mantida em vigor esta medida cautelar, após um ano, contando trinta mortos por cada um dos doze meses do ano, estima-se que cerca de 360 vidas de cidadãos comuns e policiais terão sido poupadas”, aponta o relatório. Para mostrar que as operações são um método ineficaz no controle da criminalidade, o estudo desenvolvido pelo Geni/UFF comparou os dados criminais durante o período do mês de junho de 2020 com a média de igual período entre 2007-2019: houve redução de 47,7% dos crimes contra a vida e, com queda, em particular de 39,9% no número de homicídios dolosos.
Os próprios pesquisadores admitem no relatório que seriam necessários outros estudos sobre dinâmicas criminais e outros métodos policiais de controle do crime para análise mais ampla e detalhada e para identificar fatores que ajudem a explicar, de maneira mais profunda, por que operações policiais contribuem para o aumento dos crimes violentos e não para sua redução. Eles destacam, contudo, que os dados da pesquisa não foram surpresa, “considerando que as operações policiais ocupam o cerne das políticas de segurança pública no Rio de Janeiro há mais de trinta anos e que o aumento das graves violações dos direitos humanos não foram acompanhados pela oferta de segurança aos habitantes da Região Metropolitana”.
Expectativa por mais medidas cautelares
Essa política de confronto – que ameaça o direito mais básico estabelecido na Constituição, o direito à vida – é questionada na ADPF. As medidas cautelares solicitadas na ação incluem – além da proibição dos tiros de helicóptero, dos mandados coletivos e genéricos, das restrições a operações policiais perto de escolas e hospitais – o desenvolvimento pelo governo do Rio de um plano para a “redução da letalidade policial e o controle de violações de direitos humanos pelas forças de segurança”. Esse plano, caso a medida seja acolhida pelo Supremo, deveria ser elaborado com a participação da sociedade civil e submetido ao STF.
A ação solicita ainda medidas cautelares para que buscas domiciliares sejam realizadas apenas durante o dia e buscas noturnas só possam ser feitas em caso de flagrante delito mas nunca com base em denúncias anônimas; para que agentes de segurança e profissionais de saúde preservem todos os vestígios de crimes cometidos em operações policiais; para suspender sigilo dos protocolos de ações policiais; para determinação a elaboração de relatórios detalhados ao fim de cada operação policial; para instalar equipamentos de GPS e sistemas de gravação de áudio e vídeo nas viaturas policiais e nas fardas dos agentes de segurança; e determinar a suspensão de artigo de decreto de Witzel que excluiu os indicadores de redução de homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial. do cálculo das gratificações dos integrantes de batalhões e delegacias.
O julgamento das medidas cautelares começa na sexta-feira no plenário virtual do STF – os ministros têm uma semana para votar remotamente e o relator é o ministro Fachin. “Depois deste resultado da confirmação da liminar, nós temos muita expectativa que o Supremo acolha as cautelares – ou, pelo menos, parte delas – o que teria um impacto muito positivo na política de segurança do Rio de Janeiro”, afirma a pesquisadora Renata Neder, do do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania.
A decisão liminar de Fachin, acompanhada por outros oito ministros, determina a comunicação ao Ministério Público do Rio para acompanhar as operações. Segundo Fachin, o acompanhamento é imprescindível, caso sejam absolutamente necessárias as incursões policiais nas comunidades durante a pandemia, “para não colocar em risco ainda maior população, a prestação de serviços públicos sanitários e o desempenho de atividades de ajuda humanitária”. Segundo o relator, o uso da força só é legítimo se for comprovadamente necessário para proteção da vida e do patrimônio de outras pessoas, e essa exigência de proporcionalidade decorre da necessidade de proteção ao direito à vida e à integridade corporal. “São, portanto, extremamente rígidos os critérios que autorizam o uso legítimo de força armada por agentes de Estado. Esses critérios não podem ser relativizados, nem excepcionados”, afirmou.
Antes do julgamento, o governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), enviou ao STF manifestação em que culpa a decisão liminar – que proibiu operações policiais em favelas durante a pandemia — por um suposto aumento de ações da criminalidade em comunidades, desmentido pelos próprios dados oficiais do ISP. Para a polícia do Rio, a decisão do Supremo cria uma “zona de proteção ao crime organizado”.