E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista nos conta sobre tapetes de Corpus Chgristi e as tristes histórias que ouve na sala de aula
“Neste feriado de Corpus Christi, a avenida Mirandella, a via principal de Nilópólis (RJ) minha cidade, estava fechada para carros em virtude da tradicional exibição dos tapetes de Corpus Christi.
Talvez porque de madrugada tinha chovido um pouco, os tapetes ainda não estavam prontos. As pessoas estavam na rua os confeccionando sob o sol ameno da manhã. Vi as folhas de papel pardo estendidas na rua; os moldes no chão e os materiais: as pedrinhas de sal, as tintas, as colas etc.
Dei-me conta de que o texto da semana de alguma forma deveria ser feito à maneira destes tapetes coloridos, frutos desta tradição que tem o encantamento das coisas que vão se perdendo.
Só que aí veio o problema: a minha matéria-prima não é outra senão os assuntos do meu cotidiano. Sou professor, o que não me falta é assunto. Vieram à tona dois episódios, bem delicados que eu, na medida do possível, transcrevo abaixo:
Eva (nome fictício) é uma aluna minha do ensino fundamental. As aulas na turma dela são sempre confusas, difíceis. Sou obrigado a falar alto, a me exaltar, a pedir que aluno troque de carteira, a impor uma espécie de respeito do qual não me admiro mas sem o qual não posso nem sequer apresentar a minha aula expositiva.
Na quarta passada Eva veio até a minha mesa e me contou uma história sobre trauma e estupro. No vaivém da conversa, disse-me que ela perdera os pais muito cedo, que fora criada por tios, e que não era uma pessoa traumatizada por ter sido estuprada. Disse-me assim, como quem passa uma receita de sanduíche.
A minha reação foi ouvir a história com cuidado, sem me intrometer. Assim que ela acabou de contar, desconversei. Pedi para que ela me trouxesse o caderno para que eu desse visto. Assim a história se encerrou.
Encerrou, qual o quê! Agora já não sei se acredito na aluna ou não. Na hora, acreditei. Porque ela não é o tipo de aluno que fica a inventar histórias. E tem mais: fiquei me perguntando por que eu no meio de tantos alunos justamente daquela turma, desde o primeiro dia de aula, aquela jovem de seus doze anos me chamara a atenção.
Mostrei parte deste texto à minha mulher, que me perguntou se a aluna era a senhorita Sheep (nome fictício). Eu disse que não, mas acabei me lembrando que Sheep, minha aluna do fundamental, entrou em sala aos prantos na aula de duas semanas atrás. Seu tio tinha morrido em um acidente. Ele caiu da moto e um carro o atropelou em seguida. Ele foi levado ao hospital e não resistiu. Eu a consolei.
A certo momento da aula, ela veio até a mim para me perguntar se ela estava se “vitimizando”. Achei muito estranho a expressão “vitimizar” na boca de alguém de seus dez anos. Respondi que não, que o caso não era de se fazer de vítima, que ela estava manifestando uma dor profunda por alguém de quem gostava, que era de seu círculo de afetos. Era necessário desabafar.
De fato, não estranhei a sua dor, mas a sua presença em sala de aula naquele dia. Perguntei por que ela veio para a escola, ao que ela me respondeu que toda a família tinha ido ao enterro do tio e que ela não poderia ficar sozinha em casa.
Caí na asneira de dizer para Sheep que ela talvez precisasse de terapia, isto é, de alguém que não fosse da família que a ajudasse a lidar com o que ela estava sentindo se fosse o caso. Era meio tarde demais quando me dei conta de que falas como essas que proferi são distorcidas de uma maneira absolutamente absurda. Que um responsável dela poderia bater na porta da minha sala disposto a tirar satisfações comigo porque eu disse que a filha dele era maluca, pois sugeri que ela precisava de terapia.
Na semana seguinte ao ocorrido a senhorita Sheep entrou em sala como se nada tivesse acontecido. Cá entre nós, reparei desde a primeira aula que a senhorita Sheep destoava dos demais alunos da turma. É como se ela, a senhorita Sheep, fosse uma black sheep, algo assim.
Eu sou recém-chegado naquela escola, não conheço a turma direito, posso estar enganado.
Nas confusões em que se meteu das quais fui participado em minha aula, a senhorita Sheep era curiosamente mais articulada em defesa própria do que a maioria dos alunos, o que talvez diga um pouco sobre sua personalidade. Eu mesmo ouvi de sua boca: “Professor, eu estou com minha consciência tranquila, sabe?”.
Eu não sei, não. Só sei que talvez eu esteja em um momento delicado de hiper sensibilidade. Só sei que assuntos assim não me saem da cabeça num estalar de dedo. Talvez eu mesmo precise de terapia, além de uma grana e de uns quilinhos a mais. Vá saber. Só sei que, de uma maneira misteriosa, criei este tapete feito para durar um dia, se tanto.
Hoje à tarde meu filho fez as contas: faltam doze anos para eu requerer minha aposentadoria. Aí sim, será o meu tapete mágico. Que voe, que voe o tempo para que eu possa também voar.”
Foto: Tapete de Corpus Christi – Nilópolis (do site da Prefeitura)