Mais um episódio da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Neste capítulo, Cícero César fala de Cícero Romeiro Batista, seu pai.
Ao ler o belo texto (mais um) do amigo César, lembrei de uma historinha atribuída a Gabriel Garcia Marquez sobre o pai. Ao ser perguntado como era sua relação com o pai, o escritor, que foi criado pelos avós, respondeu: “agora que nossas idasdes estão próximas, vamos muito bem”.
Mas, pelo que conta, Cícero César sempre esteve bem com Cícero Romeiro, independente das idades. Bom, vamos à tocante crônica de nosso cronista, com direito a capítulo de livro dedicado ao filho Francisco…
Prezado Washington, pareço fisicamente muito com a minha mãe. Herdei, entretanto, o nome de meu pai. Para todos os efeitos eu sou um Cícero, o que significa que fui batizado com o nome do padre cuja fama de milagreiro foi enorme no Nordeste brasileiro, pelo menos durante a primeira metade do século XX.
Não irei tão fundo a ponto de chegar até o nome do moralista romano. Não é ali que está a raiz do problema. Aliás, não há problema nenhum. Quase me chamaria Antônio, nome do qual gosto muito, mas não me coube a escolha.
E também tenho César como segundo nome. Fiz de tal combinação um tanto inusitada o meu nome artístico. Batizei-me de Cícero César, para o que desse e viesse.
Cícero Romeiro Batista, meu pai, nasceu em uma cidade litorânea de Alagoas que hoje se chama Marechal Deodoro. Dionner Sotero Batista, minha mãe, é de uma cidade às margens do Rio São Francisco chamada Penedo.
Ambas as cidades possuem um enorme potencial turístico, cada qual por seu motivo. Marechal Deodoro, além de ser mais próxima de Maceió, capital do estado, possui a Praia do Francês, uma das praias de mar aberto mais bonitas que conheci na vida.
Penedo, por sua vez, possui um casario que valeria a pena o investimento em preservação. Seria uma cidade à altura de Paraty, por exemplo. Entretanto, Alagoas não é a Bahia nem Minas Gerais nem Pernambuco nem Rio de Janeiro.
No início dos anos 1970s, meu pai pediu transferência para o Rio de Janeiro. Ele já era formado em Contabilidade pela UFAL. Com certeza foi um dos primeiros da família a obter diploma universitário, se não o primeiro. Ele já era funcionário da Petrobrás.
Concursado. Meu pai era, portanto, um migrante peculiar. Pecúlio tinha, pouco mas tinha. Trabalhou até se aposentar na empresa que amava e que nos ensinou a amar. Depois foi estudar psicanálise. Virou psicanalista.
Ele não ganhou rios de dinheiro, mas era muito comedido. Não nos deixou faltar nada em casa, mas não fez muitas extravagâncias. Talvez apenas uma de que me recordo vale o registro: certa vez, no início da década de 1980, embarcamos ele, meu irmão e eu em uma viagem de descoberta do Brasil. Fomos a Florianópolis, com direito à visita ao Balneário de Camboriú de táxi; de lá a Porto Alegre, com direito à visita a Gramado e a Canela; de Porto Alegre a São Paulo, tudo de ônibus.
Foi nessa viagem que conheci a fama de rodovia mais perigosa do mundo da Régis Bittencourt. Muitos acidentes na estrada. Veio-me à recordação agora o rosto ferido de uma argentina. Era uma mulher jovem, loura, alta. Eu a vi de passagem em umas dessas paradas de ônibus. E a vi agora, outra vez, de relance, apesar da noite.
Como se não bastasse, de São Paulo voltamos ao Rio, provavelmente de Cometa. Um dos meus poucos caprichos de menino era exigir que a gente viajasse de Cometa se fossemos para São Paulo. No dia seguinte à nossa chegada ao Rio, de malas prontas de novo, fomos para Maceió visitar a parentada, desta vez de avião pela saudosa Transbrasil.
Não sei quanto meu pai gastou, deve ter sido um bocado. Entretanto, creio que tenha valido cada centavo do investimento.
Meu pai faria oitenta e três anos no 16 de maio. Morreu em decorrência de um câncer de intestino. Sobreviveu à cirurgia, mas não ao pós-operatório.
Aceito a realidade, Washington, a ela não me conformo. Respeito muito religião e tal, mas para quem viu um homem bom, o homem da sua vida a definhar, fica difícil ser confortado com a promessa de uma vida melhor além desta aqui que nos foi dada.
O texto a seguir, faz parte do livro que escrevi para o Francisco, o meu filho mais velho. Chama-se “Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos” e foi publicado no final de 2019. Quem poderia imaginar o que nos esperava ao fim de março de 2020, quando a pandemia nos fez ficar em casa por quase dois anos?
Vamos ao texto!
Nilópolis, 5 de junho de 2016.
Meu querido filho,
“Não, Papai, o vovô de barba não virou estrela. Só vira estrela quem morre.”
“Você tem razão, meu filho.”
Tiraram a barba do vovô de barba, mas ela cresceu de novo feito penugem. Primeiro, em volta do queixo, onde se desenhou um cavanhaque. Depois, dos lados; por último, o bigode, que ficou mais curvo. O nariz permaneceu adunco.
Vovô de barba, então, se levantou, preparou o café, pegou o jornal na porta. Tio Dênis acordou. Vovó Dionner, mesmo tendo acordado cedo, ficou mais um pouco na cama. Depois do banho, vovô de barba vestiu uma roupa bonita que ele mesmo tinha cuidadosamente passado, pôs as meias “Kendell” que lhe apertavam as varizes da perna esquerda, pôs as botas pretas que reluziam de tão limpas.
Escreveu com sua letra grande e caprichada um recadinho na mesinha do telefone: “Passei os bifes”. Pegou a bolsa preta de couro, tão bonita, desceu de elevador, brincou com o porteiro Emanuel. Chegou até o ponto de ônibus, encarou o ônibus 606 em direção à Tijuca, para atender às três pacientes do consultório, que não foram.
Depois, fazer o quê, fez o caminho de volta. Fazia um dia ameno, nem frio nem quente, de muita luz, porque era outono.
Ia pensando.
Sentiu-se mais disposto do que nunca. Leve, leve. Mal chegou de volta à casa, pôs as roupas de ginástica, saiu de novo, deu umas três voltas pelo Grajaú, passou no “Hortifrutti”. Reparou que estava sem óculos, mas demorou a se dar conta, óculos pra quê?
Pagou as compras com cartão de crédito. “Vou a pé num pulo”, decidiu. Três sacolas de frutas e legumes, mais a Coca-Cola, mais o Guaravita, mais o sorvete de banana caramelada. Abriu a porta com cuidado. Passou mais bifes, fez arroz, fez feijão, leu o jornal, ligou para Josete, separou os documentos para a reunião em Ipanema.
Com cada coisa em seu lugar, fica mais fácil. Pensou em ligar para o filho César (Seu papai), mas esperou que o filho tomasse a iniciativa e fizesse a ligação. Era sempre assim, ele esperava, esperava. Ele queria saber de você, meu filho, e da Cecília. Queria saber se vocês estavam bem, se você tinha tido inflamação na garganta, se eu tinha tomado providências, se Cecília tinha aprontado.
Riu um bocado das minhas histórias, porque eu liguei para ele com vontade de fazê-lo rir, porque tinha que ligar, como se houvesse sincronia na coincidência, porque tinha me dado uma coisa, uma saudade de todos.
Falou-me que vovó Dioner estava se repetindo, que Tio Dênis estava melhorando com o Pilates, que Tio Paulo não ouvia.
A conversa com o vovô de barba era assim, era meio diferente de uma conversa tradicional entre pai e filho, às vezes parecíamos dois bons velhos amigos de sempre. Com gente que nem ele, eu me sinto à vontade de inventar ser eu mesmo.
Vovô de barba, além de tudo, também sonhava. Tinha aquele sonho em que lhe aparecia uma tabuleta com algo escrito. Só que a tabuleta tinha sido posta lá no alto, de modo que era impossível ler a informação nela contida.
Ele se ria, pois pensava que somente um cabeça de vento poderia ter posto a tabuleta em lugar tão inapropriado. Era ilógico, um disparate, assim ninguém a via, julgou.
Dessa vez, ia ser diferente. Pegou uma escada, não deu. Pôs em cima da mesa uma cadeira sobre a escada, rearranjou as coisas, também não deu. Deu vontade de rir da travessura. Pôs sobre a cadeira, em equilíbrio instável, a coleção completa de Freud, mais a de Lacan, mais os livros sobre autismo infantil, mais os balancetes da Associação de Psicanálise de que fazia parte, mais os da Petrobrás, de todos os anos em que lá esteve, mais os das empresas menores onde trabalhou, documentos que só ele sabia onde estavam, mais os sacos de milho que apontou no porto de Maceió, mais as pilhas de jornais que guardava organizadamente na dispensa (“’O Globo”’ não presta. Tenho saudades do “Jornal do Brasil”’, pensou por associação, dentro do sonho).
Ainda estava longe, embora a pilha de objetos tivesse subido praticamente até o céu, talvez mais alto. Foi quando percebeu que asas tinham surgido para erguê-lo.
Aprendeu rápido. Voando, achou meio desnecessário pensar em Freud, em Jung, em Lacan, em balancetes, em empresas menores, em informações de tabuletas.
Só lhe deu vontade, por instinto, de ir ao encontro da brisa nordestina de Marechal Deodoro, para onde migram os passarinhos que nem ele atrás de mangaba.
-Pai, você já tem asas?
– Acho que não, filho. Sou muito distraído com tabuletas.
P(ai)s. Que os pais me perdoem, mas não conheci ninguém melhor nesta vida do que Cícero Romeiro Batista, a quem dedico esta carta.
Imagem do post: desenho do canal de Youtube “Brinca e Pinta”.
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.