Temer já é ruim, mas ainda pode piorar

Compartilhe:

Por Paulo Moreira Leite, Brasil 247 – 

Os sucessivos desastres políticos ocorridos desde o afastamento de Dilma Rousseff demonstram que uma fraqueza política irremediável tornou o governo de Michel Temer ridiculamente incapaz de oferecer uma alternativa de estabilidade e prosperidade para o país.




:

Vamos classificar os fatos como eles são. A implosão do ministro da Transparência ocorreu num quadro de insurreição interna. A reconstrução do Ministério da Cultura foi obtida a muque. A revolta do movimento de mulheres forçou uma busca de talentos para integrar altos escalões do governo. Tardia demais para produzir qualquer que efeito político, mostrou-se inteiramente inócua em função da audiência, no ministério da Educação, concedida a um ator celebrizado pelo tom debochado usado para descrever um crime de estupro.

No plano interno, não há como esconder: o governo provisório perdeu o debate essencial sobre sua legitimidade. No externo, onde o poder de retaliação econômica de Brasília é perto de zero, o esforço do Itamaraty para atuar como agência de publicidade do golpe parlamentar só trouxe resultados patéticos depois que gravações mantidas em conveniente segredo até aqui desmascararam a natureza anti-democrática, mesquinha e suja, da conspiração que afastou Dilma. A desmoralização na realidade é anterior. Começou no Festival de Cannes, que retomou a tradição criada no tempo das ditaduras sul-americanas, quando, pela primeira vez, seu auditório serviu para atos de protesto. Prosseguiu no repúdio de 499 sociólogos reunidos em Nova York ao antigo príncipe da profissão, Fernando Henrique Cardoso.

A situação de fratura exposta não representa nenhuma garantia, porém, para o retorno à democracia e à preservação dos direitos e liberdades colocados em risco, mas a possibilidade de reversão do quadro atual tornou-se pelo menos verossímil.

Afastada do posto, numa espécie de exílio vigiado no Alvorada, hoje Dilma desfruta dos melhores índices de aprovação desde o tumultuado início do segundo mandato. Sua recuperação é expressão, em primeiro lugar, da conjuntura política e da desarticulação visível do governo Temer.

A presença de Dilma no Memorial Darcy Ribeiro, para o lançamento, ontem, do livro “A resistência ao golpe de 2016”, que reúne artigos de uma seleção de autores comprometidos com a causa democrática, marca uma diferença que permite comparações — a favor da presidente afastada.

Em julho de 1964, quatro meses depois do golpe militar, o cronista Carlos Heitor Cony, que foi um dos principais críticos dos anos iniciais da ditadura, assegurando ao Correio da Manhã um prestígio que jamais possuiu, lançou a coletânea O Ato e O Fato, na Feira de Livro do Rio de Janeiro. A presença de leitores foi enorme, como mostram fotos incluídas na contracapa de uma edição posterior, onde se lê: “foi a primeira manifestação civil realmente espontânea contra o regime militar.”

A diferença central em relação aos dias de hoje é a presença de Dilma na resistência. Ontem, ela fez um discurso de 40 minutos, tão bem sucedido que, no final, a platéia gritava querendo mais. Acusou os adversários de “usar a democracia contra ela mesma.” Para sublinhar que as denúncias usadas para afastá-la não foram mais do que um pretexto, lembrou que, em nenhuma das gravações que documentam a conspiração, fala-se de “pedaladas fiscais nem do plano Safra.” Lembrou da condição feminina, referência indispensável numa conjuntura onde o movimento de mulheres assumiu um lugar destacado na resistência. Repudiou os “xingamentos de caráter sexista” usados pelas hordas mais selvagens, dizendo ainda que “a resistência ao golpe é um pouco mais difícil para as mulheres.”

“Temos nossa consciência” disse a presidente, ao se despedir. “Sabemos porque lutamos: o único rumo ao nosso país é a democracia.”

Ao contrário do que se diz, as gravações descobertas pelo repórter Rubem Valente não revelam a disposição de parar a Lava Jato. Nenhum dos interlocutores engravatados manifestou interesse, por exemplo, em defender o direito de Luiz Inácio Lula da Silva a presunção da inocência. Como notou o indispensável Janio de Freitas, a finalidade das conversas é manter as operações no curso realizado até aqui, como uma ação seletiva contra uma fração definida do sistema político, aquela que as lideranças que se apossaram do poder e da riqueza há mais de 500 anos tornaram-se incapazes de vencer pelo voto do povo.

Não vamos criminalizar as ideias e interesses que movem a luta política. Nem vamos fingir que imaculados princípios morais se encontram no centro das preocupações. O logro Eduardo Cunha descarta inteiramente essa possibilidade.

O objetivo real é destruir pela raiz um projeto político-econômico que permitiu, por uma década e meia, que o país apostasse no crescimento do  mercado de massas e o apoio a industria local. Não se trata de uma disputa democrática — e por isso não pode ser levada para as urnas. Sua base não é a legitimidade, mas o interesse de uma classe, os 1% que dominam a riqueza e o poder no país. A pressa é tamanha que até a ministra de Relações Exteriores da Argentina protestou contra o ritmo acelerado de seu colega brasileiro José Serra em rever tratados comerciais entre os dois países.

A experiência ensina que rupturas institucionais sem grandes cenas de violência, frequentemente descritas como um tumor quase benigno, podem se transformar num estímulo a aventuras maiores, irresponsáveis e nocivas, que muitas vezes são promovidas quando um regime de exceção não se encontra em posição de força, mas de fraqueza.

O período mais selvagem da ditadura de 1964 foi inaugurado em dezembro de 1968. Naquele momento, o regime dos generais enfrentava um ambiente hostil no país. Por motivos mais do que compreensíveis, a cultura tornara-se um universo dedicado a  formas variadas de protesto. Depois de abençoar o golpe, padres e mesmo alguns bispos passaram a  constituir o “clero revoltoso”, na expressão dos aliados do regime. O  descontentamento aparecia nas universidades, ruas e nas fábricas. No Congresso, a ditadura foi derrotado numa votação crucial, na qual estava em jogo a proteção da imunidade parlamentar: 70 deputados do partido criado pelos generais votaram contra o governo. As principais lideranças civis do Brasil anterior ao golpe haviam tentado unificar-se, construindo a Frente Ampla.

Nessa situação, os comandantes militares, que tinham as rédeas do regime,  optaram pela pior opção  possível, numa atitude que confirma a velha observação de que, a beira do abismo, muitas pessoas só conseguem dar um passo em frente. Aprofundaram a  ditadura, suspendendo as garantias institucionais que restavam — como o habeas corpus –, transformando a violência dura do aparato repressivo em terror organizado pelo Estado. Uma ditadura que durava quatro anos prolongou-se por mais 17.

Retirado de circulação por caminhões do Exército, quando saía de suas oficinas gráficas, o editorial “Instituições em frangalhos,” do Estado de S. Paulo, braço midiático do golpe de 31 de março que não deixava de enxergar a tragédia em curso, descrevia a conjuntura que levou ao AI-5 com palavras claras. Falando dos governantes de farda, sem sensibilidade para perceber “sinais precursores de grandes terremotos”, o jornal dizia que o marechal-presidente Costa e Silva não fora capaz de perceber que dirigir um país “é coisa muito diferente de comandar uma divisão ou  um Exército.” Sintetizando suas avaliação, o jornal falava de um “estado de coisas que tanto se assemelha ao desmantelamento total de um regime…cuja integridade encontra-se por um fio.”

Não há comparação possível entre as duas situações e respectivos personagens. A opção de uma parcela importante dos adversários da ditadura para ações armadas ajudou a unificar a elite dirigente e seus fiadores internacionais no apoio à ditadura. A situação é muito diferente de hoje, quando a resistência ao golpe assume a perspectiva da democracia e defesa da liberdade.

O exemplo de 1968, no entanto, adverte homens e mulheres de 2016 que uma situação ruim sempre pode ficar pior. Por essa razão, o combate ao golpe e à restauração do regime democrático não é uma opção entre outras — mas uma necessidade, acima de tudo.

O Bem Blogado precisa de você para melhor informar você

Há sete anos, diariamente, levamos até você as mais importantes notícias e análises sobre os principais acontecimentos.

Recentemente, reestruturamos nosso layout a fim de facilitar a leitura e o entendimento dos textos apresentados.
Para dar continuidade e manter o site no ar, com qualidade e independência, dependemos do suporte financeiro de você, leitor, uma vez que os anúncios automáticos não cobrem nossos custos.
Para colaborar faça um PIX no valor que julgar justo.

Chave do Pix: bemblogado@gmail.com

Tags

Compartilhe:

Posts Populares
Categorias