Dados apontam que período eleitoral de 2024 já é o mais violento dos últimos cinco anos
Por Matheus Moura, Leonardo Coelho, compartilhado de A Pública
Tudo começou no dia 30 de agosto deste ano, com um simples cartaz escrito “Cadê a Merenda?”. A peça foi colocada em frente à casa de Vinícius Crânio, candidato não eleito à prefeitura de Belford Roxo pelo PSOL e cria do bairro Xavantes. Desenhado pela irmã de Crânio e segurado por seu pai, Marcelino Araújo, 60 anos, um eletricista concursado da prefeitura, a mensagem tinha alvo, com nome e sobrenome: Denis de Souza Macedo, residente do mesmo bairro, então secretário de Educação da cidade. Ele foi exonerado do cargo em julho deste ano, após ter sido preso pela Polícia Federal (PF) em um escândalo de roubo de merenda.
O que era para ser apenas mais um protesto acabou atraindo um grupo de homens encapuzados, que teriam agredido seu pai. Segundo Araújo, naquele dia, o sobrinho do ex-secretário, o vereador eleito “Matheus Igual a Você” (Republicanos), que passava em carreata, teria ordenado que tirassem o cartaz. Matheus é irmão do Farmacêutico Bruno Vinícius Oliveira, que foi lotado na vaga de Macedo na secretaria pelo prefeito de Belford Roxo, Waguinho, também do Republicanos.
“Eu estava aqui no quintal quando escutei uma carreata chegando. Aí eu falei: ‘Ih, veio um ladrão de merenda’. Aí eu corri e peguei o cartaz. Eles me filmaram e o vereador [Matheus] ordenou que tomassem o cartaz de mim. Quando os integrantes da milícia aqui do bairro vieram, eles quebraram o meu portão e danificaram a minha porta na tentativa de fuga. Levaram as ferramentas e chegaram a me acertar um chute. Eu também acertei chute neles. Eu joguei água no carro de som e eles foram embora. Aí ficou nessa guerra. Eu fui na delegacia, fiz o BO [Boletim de Ocorrência] e mandei a denúncia para o Ministério Público.”
Crânio disse para a Agência Pública que nada do que foi denunciado avançou, apenas as tensões. Elas culminaram na madrugada do último dia 1º de outubro, quando seu pai permitiu que grafiteiros locais fizessem uma enorme pintura em seu muro com os dizeres: “Cadê as merendas?”. O novo protesto mais uma vez insuflou ataques, dessa vez de uma carreata, que foram gravados por câmeras de segurança cedidas à reportagem.
“Eles vieram nessa madrugada, por volta de 3 horas da manhã. Fui acordado com meu pai já em alerta máximo, dizendo que estavam invadindo nossa casa mais uma vez. Aí eu acordo, já ligo o celular pra gravar, pra gente fazer provas. Eu abro a live e vou lá pra fora”, lembra Crânio.Homens invadiram a casa de Crânio na madrugada do dia 01 de outubro
O candidato e seu pai disseram ter sido agredidos. Crânio acusou publicamente Matheus como um dos agressores, além de ter denunciado que seu telefone celular foi roubado e sua bicicleta, danificada no ataque. Seu pai gravou um vídeo em que explica o que aconteceu e expõe que seus cachorros também teriam sido atingidos.
A Pública tentou contato com a candidatura de Matheus, mas este não respondeu. Segundo reportagem de O Globo, ele teria negado o ataque através de suas redes sociais.
A história não teve um desfecho mais grave, mas é significativa de como candidatos à esquerda precisam tomar cuidado na Baixada Fluminense. “A violência, como você pode ver, bateu na nossa porta e poderia ter tirado nossas vidas. A gente estava num local ermo, escuro, com mais de 15 homens encapuzados como verdadeiros assaltantes de banco. E nós fomos agredidos, espancados e roubados. Isso tudo a mando de um vereador local”, denuncia Crânio.
No dia 4 de outubro, o candidato acusado de ser o autor dos ataques foi alvo de uma operação do Ministério Público Eleitoral (MPE) com a Polícia Militar que apurava corrupção e coação eleitoral. Segundo nota, a apuração sobre o crime de coação teve início após o MPE ter recebido denúncia de que o grupo miliciano que atua no bairro Xavantes estaria obrigando os eleitores do local a votar no candidato investigado. Em troca, os milicianos ganhariam proteção do parlamentar. O MPE disse ainda para a reportagem que apreendeu quase R$ 60 mil em espécie na residência do candidato à vereança, que alcançou a reeleição com 2.993 mil votos. Crânio, por sua vez, não foi eleito.
Historicamente, candidaturas de partidos de esquerda são raras na região da Baixada Fluminense e, por conseguinte, tendem a estar pouco presentes nos casos de violência política eleitoral. De um total de 94 casos computados de violência política eleitoral desde 1989, apenas 19 tiveram como alvos candidatos à esquerda, pouco mais de 20%. Para chegar a esses dados, a Pública juntou dois bancos de dados – uma base do pesquisador Huri Paz, do Afro-Cebap, e outra do Instituto Fogo Cruzado – com mortes e atentados na Baixada.
Segundo Miguel Carnevale, pesquisador do Observatório de Violência Política e Eleitoral da Unirio, os municípios brasileiros, em sua maioria, são dominados pela direita e pela centro-direita, principalmente nos com menor população. “A esquerda, a centro-esquerda, tem pouca entrada nessas esferas. Então você consegue verificar uma proeminência desses recortes ideológicos e, consequentemente, de legendas alinhadas com esse campo.”
Dados parciais do Observatório já dão conta de que o período eleitoral de 2024 já é o mais violento dos últimos cinco anos. “Esse aumento tão significativo com a aproximação das eleições nos faz pensar que pelo menos um grande recorte desses casos tem motivações políticas e eleitorais.”
“Só de ter uma ideia você já vira alvo”
Para o candidato não eleito a vereador de Magé Anderson Ribeiro (PSOL), a proximidade dos cidadãos com os políticos da região só piora a violência política na Baixada. “Diferentemente da capital, onde dificilmente você vai no mercado e encontra o Eduardo Paes, aqui, em Magé, você pode encontrar o prefeito no mercado, o secretário de Ordem Pública almoçando num restaurante… Eles sabem onde a gente mora, quem são nossos pais, quem são nossos amigos, quem são nossos parentes. Então, isso gera uma insegurança”, diz.
Tal proximidade faz com que não seja necessário – muitas vezes – recorrer à violência explícita. Ataques “invisíveis”, que a maioria não vê nem fica sabendo, mas que impactam brutalmente seus alvos, são parte do arsenal psicológico do status quo na Baixada Fluminense.
“Eles utilizam da institucionalidade para punir, seja negando algum tipo de serviço público, seja não facilitando acesso. Vão dificultar o máximo que puderem”, diz o político, que atua também como advogado em Magé. “Se eles percebem que um comerciante tá dando apoio pra gente, eles vão lá e caçam o alvará dele, então tem gente que não pode falar publicamente que me apoia.”
Segundo a candidata a vereadora em Duque de Caxias Rose Cipriano (PSOL), que também não se elegeu, essas pequenas violências têm impactos. Com mais de duas décadas atuando com educação e na frente sindical, Cipriano já foi atacada em vídeos anônimos que circularam pela escola onde é professora e afirmavam que ela não trabalhava, mas ainda sim ganhava uma fortuna.
Outra vez, uma página de notícias local afirmou que ela seria uma “fraude”. Na época, dois secretários lotados na prefeitura de Caxias compartilharam a publicação. “Felizmente uma professora conseguiu printar e, com isso, conseguimos entrar na Justiça e ganhar a causa contra esse tipo de compartilhamento”, lembrou Cipriano. “Enquanto uma mulher, uma mulher negra, o nosso corpo é político e já é desafiador somente pela sua existência. O que dirá pela nossa atuação. No território, o que conta é a sua trajetória”, acrescentou.
A “militicagem”: milícia com politicagem
Segundo Adriano de Araújo, 57 anos, coordenador executivo do Fórum Grita Baixada, grupo que há mais de uma década se articula e mobiliza para tentar solucionar problemáticas sociais e de direitos humanos na Baixada Fluminense, a presença de milicianos acirrou a disputa territorial na região e tornou a violência algo ainda mais presente.
Araújo chama atenção para a quantidade de pré-candidatos que sofreram atentados ou morreram nos últimos dez anos: foram 14. Ele diz que, se antes eram os políticos em exercício que eram os principais alvos de violência, agora os políticos que ainda nem foram eleitos já estão entre os alvos mais frequentes. “Isso é muito sintomático, porque você já elimina a concorrência na saída.”
O cientista social nilopolitano Augusto Perillo, de 29 anos, vai até mais longe em sua análise. Pesquisador que foca seus estudos em desaparecimentos forçados e valas clandestinas, Perillo observou recentemente um candidato usar um termo que para ele resumiu bem a situação: “militicagem”, uma mistura de milícia com politicagem. Isto é, trazer a linguagem da milícia e do tráfico para a política.
Para o pesquisador, se esses grupos não matarem, eles não se elegem. “Existe uma certa pedagogia, sabe, dessa violência que é instrumentalizada na hora eleitoral por esses grupos. Esses dois fatores, da violência e do dinheiro, são as duas chaves que caracterizam essa ‘militicagem’, que mostra um pouco como é feita a política. [Existe] uma precariedade muito grande de serviços, esses caras [controlam] as entradas em serviços e também utilizam da violência para expropriar os trabalhadores e terem voto.”
Como resultado, todo cuidado é pouco, especialmente para candidaturas minoritárias e com pouquíssima verba partidária. “Só de você ter uma ideia, você já se torna alvo”, pontuou o vereador derrotado nas urnas Anderson Ribeiro. Ele usa como exemplo o seu próprio grupo político, bastante vinculado às pautas ambientais em Magé. “O movimento social tem medo de se aliar com quem denuncia muito. Por quê? Porque aí eles têm medo de se tornar alvo também”, diz.
Isso não significa, contudo, que a esquerda não esteja presente na Baixada, ela apenas não é forte na política institucional, avalia Rose Cipriano, para quem essa é a grande contradição da Baixada. “Embora no parlamento a gente veja a ausência da esquerda, nos movimentos sociais, não. Caxias e a Baixada Fluminense sempre foram pujantes [na atuação de movimentos sociais]”, citou a professora, militante do Movimento Negro Unificado e articuladora do Coletivo Minas da Baixada, explicando a importância dos movimentos eclesiais de base na década de 1980 com as associações de moradores que ajudou a fomentar construção de passarelas, na construção do hospital de Saracuruna e outras conquistas.
Para tentar lidar com a insegurança na Baixada, os políticos de esquerda têm recorrido a soluções como: evitar postar a sua localização em tempo real, ficar em áreas centrais das cidades ou bairros, não divulgar a agenda com antecedência etc.
Atualmente, Ribeiro está rascunhando a ideia de criar uma “carta política da Baixada” para avaliar a reconfiguração dos fundos eleitorais, seja através do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ou via casas legislativas, para que a divisão se dê com base na periculosidade do local onde se faz política.
“Qual é a perspectiva de mudança num cenário onde uma liderança nova surge e ela é assassinada? Não tem perspectiva de mudança, infelizmente. Então, assim, hoje o fundo eleitoral para as candidaturas como a minha, que é uma candidatura pequena, a gente chega a migalha, entendeu? Se a gente pegar o microfone e for na praça pública falar, a gente se torna alvo.”
“Os recursos ficam na zona sul do Rio”
Morador de Belford Roxo há décadas, Moacir Valani já tentou se candidatar pelo PT nos anos 1990, PCdoB em 2020 e agora, em 2024, tentou a vaga na vereança pelo PSB. Não conseguiu novamente ser eleito.
Em conversa com a Pública, ele conta que, desde 1968, quando chegou à cidade, viu o fim das associações de moradores, que, segundo ele, deixou as pessoas reféns do já conhecido e tradicional personalismo político. “Qualquer coisa que você precisar, você tem que depender de político A, B ou C, assim você fica refém deles. Até mesmo alguns amigos que encontrei nesse pleito disse: ‘Vou votar em fulano pois faz acontecer a cirurgia que precisam”, disse, lembrando o famoso escândalo na gestão Crivella do “Fala com a Márcia”.
“A eleição municipal ainda é marcada muito por um personalismo e por uma ideia de que a pessoa, o eleitor, está votando na pessoa e não na legenda. Isso coloca a gente no lugar de, às vezes, ter uma votação expressiva, mas que não se reflete para o partido”, concorda Cipriano.
A leitura de pesquisadores da região é que a esquerda institucionalizada deixou a Baixada sob o tapete, esquecida, com os movimentos de associações de base (MAB) e grupos eclesiais desarticulados. “Há uma institucionalização dos movimentos sociais e os trabalhos no território se esvaziam. Muitos dos movimentos sociais são capturados pela institucionalidade e lideranças ganharam cargos”, afirma Perillo. Segundo ele, esse esvaziamento dos movimentos teria aberto espaço para as igrejas evangélicas.
“Na esquerda ‘zona sul’ [do Rio] você disputa voto a partir de opiniões. Você não precisa fazer trabalho de base. Se você fizer uma boa opinião sobre o aborto, uma boa opinião sobre qualquer coisa, e tem uma boa propaganda, você alavanca sua candidatura, mas aqui na Baixada isso não existe”, conclui Perillo, apontando que a disputa é feita com as igrejas e a ideologia do mercado. “Você tem que fazer trabalho de base na Baixada, e você não faz sem recurso. Os partidos não dão recurso, que ficam concentrados na zona sul e centro do Rio de Janeiro.”
Outro front no xadrez político da Baixada, que geralmente fica atrás dos holofotes quando se discutem candidaturas à esquerda, são as coligações. Muitos políticos e militantes da região que falaram com a Pública compartilharam seus questionamentos e tensões, principalmente com as alianças feitas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) na região.
“O PT aqui da Baixada, que a gente ajudou a construir, ele se vendeu”, disse Valani, contextualizando o apoio recente do presidente Lula ao candidato Waguinho (Republicanos), que perdeu a corrida. “É uma direita disfarçada aí, usando o título do PT. Mas de trabalhador não tem nada.”
Crânio emenda as críticas ao pragmatismo petista na Baixada. “Eu tenho uma tristeza muito grande de ver o PT alinhado com esse governo bolsonarista aqui de Belford Roxo”, reclamou, apontando outras inconsistências do presidente Lula em apoiar Waguinho, que em 2022 flertou com Bolsonaro, recuou e virou a casaca para o atual governo federal. “Uma candidatura que maltrata o servidor, uma candidatura que não faz concurso público, uma candidatura que é déspota, uma candidatura que hoje nós temos quase cinco vezes mais de funcionários indicados do que concursados.”
Edição: Bruno Fonseca