ICMBio reconheceu erro em demolição e apresentará plano de compensação; diretor de Lençóis aponta indícios de racismo
Por Rafael Martins, Ed Wanderley, compartilhado de A Pública
A porta azul que exibe o salmo 91 já não guarda o pequeno altar do terreiro de jarê do Peji Pedra Branca de Oxóssi, em Lençóis (BA), na mata do Vale do Curupati, a cerca de 420 km de Salvador. A construção se encontra parcialmente destruída e ainda abriga pequenas esculturas religiosas, incluindo uma Iemanjá agora decapitada e cabeças de carneiros, mas não vem recebendo celebrações de fé desde que servidores do Instituto Chico Mendes (ICMBio) iniciaram sua demolição, em 21 de julho. Os planos de reparação do ocorrido devem ser apresentados até o fim de agosto.
“Já tiveram várias enchentes dentro de Lençóis, mas nunca uma destruição como essa”, lamentou Gilberto Tito de Araújo, conhecido como Damaré, líder religioso do terreiro e integrante das 28 famílias nativas entre as 277 que habitam o Parque Nacional da Chapada Diamantina (PNCD), segundo dados coletados pela pesquisadora Maria Medrado Nascimento, da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), de Ilhéus (BA).
O jarê é uma religião indígena, de matriz afro-brasileira, específica da região da Chapada Diamantina, que mistura elementos da umbanda, espiritismo e catolicismo influenciada pelas crenças e modos de vida de garimpeiros tradicionais. O templo de 20 metros quadrados foi erguido há cerca de 45 anos, herança do pai de Damaré, garimpeiro posseiro da terra, ocupada antes da criação do parque de preservação ambiental. O material de construção foi trazido a pé por moradores e as imagens que compõem o interior são heranças de famílias locais, passadas entre gerações.
Erro reconhecido
Três dias após a ocorrência, o ICMBio reconheceu o erro. A operação apurava denúncias de desmatamentos e ocupações irregulares nas proximidades dos rios Lapão, Mandassaia e São José e apreendeu caminhões e armas, além de fechar serrarias e quatro sítios rurais. Dezesseis construções foram vistoriadas e dez delas, identificadas como não ocupadas ou construídas recentemente, foram demolidas. “Assim que os objetos de caráter religioso foram identificados no imóvel, a operação foi imediatamente interrompida”, disse, em nota, o ICMBio.
No dia 1º de agosto, uma audiência pública na Câmara Municipal de Lençóis foi realizada com representantes do órgão, do Ministério da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos e da Secretaria Estadual de Direitos Humanos e da Promoção da Igualdade Racial. Ao instituto foi estabelecido prazo de 30 dias para elaborar um plano de reparação.
Fé não interrompida
“Ver isso aqui assim é uma dor no coração. Tudo destruído. Não consigo dormir, não tenho fome”, disse Damaré durante visita da Agência Pública. Ele foi surpreendido por relatos da intervenção no Curupaiti enquanto iria a uma celebração em outro terreiro de Lençóis. “Vim correndo para cá”, lembra.
Ele aponta que a estrutura da sala de festejo, feita em adobe e pedras, foi danificada. Também foi demolida parte do quarto anexo, onde fica o altar, ou “peji”. A placa da entrada, agora sobre escombros, resistiu. Nela se lê “Peji Pedra Branca de Oxóssi: A mata se levanta, poeira levanta, pedra do morro desce e a terra estremece”.
“Nós somos descendentes de Nagô, as nossas raízes não apodrecem, continuam. O espaço do candomblé é tudo”, diz Damaré, que garante que a relação com a religião vai além do físico e que a fé resiste. “A gente já nasce com o dom”, conclui.
Governo, responsabilidade e consequências
Para o diretor da promoção da igualdade racial da Secretaria de Assistência Social de Lençóis, Uilami Dejan de Azevedo Ferreira, há fortes indícios de que a demolição teria sido um ato de racismo religioso. “É impossível estar naquele local e não perceber que se trata de um terreiro”, avalia. O profissional aponta ainda que não houve comunicação prévia do ICMBio com moradores para averiguar possível crime ambiental.
Após o caso ganhar repercussão e ser usado como ataque ao governo Lula, acusado de não respeitar povos de terreiros, o presidente do Instituto Chico Mendes, Mauro Pires, divulgou entrevista em canal oficial em que diz ser necessário “aprender com esse caso” e admite: “o estrago estava feito”.
“Há perguntas que precisam ser respondidas, como, por exemplo, as deficiências e limitações do instituto, órgão gestor do parque, que impediram o conhecimento prévio de que havia ali um terreiro de jarê, e que ali havia praticantes dessa religião, que, me parece, é bem característica da Chapada Diamantina. Ora, uma das finalidades dos parques nacionais é o uso público, entre os quais os usos religiosos”, afirmou Pires. “Se a falha ocorreu, é preciso entender suas causas e, mais do que isso, devemos agir para que não aconteça novamente.”
A relatora especial das Nações Unidas sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, Ashwini K. P, foi informada do ocorrido e deve apresentar relatório público com observações sobre o caso ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em junho de 2025.
Fotógrafo: Rafael Martins