Por Joel Santos Guimarães, jornalista, para o Bem Blogado –
“Desde 2016 o país está vivendo um tempo de violência institucionalizada que se agravou no governo Bolsonaro de forma espantosa, criando um caminho para um estado de barbárie na zona rural brasileira: há um total desrespeito à Constituição e aos direitos dos povos indígenas, quilombolas e dos sem terra”. A denúncia é do padre Paulo Cesar Moreira, da Coordenação Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
De acordo com o integrante da CPT, “o que existe é um salvo conduto, uma legitimação aberta, tanto a partir das tentativas e até de aprovação de nova legislação, de Medidas Provisórias e de emendas parlamentares, que formam um arcabouço que está significando, por exemplo, o avanço sobre as terras e territórios indígenas. “Ou seja, um dos objetivos dessa ação coordenada, a partir do Palácio do Planalto, são os territórios indígenas, dos quilombolas e também as áreas dos acampamentos e até dos assentamentos dos sem terra”, afirmou o coordenador da CPT. “O terror de Estado chegou ao campo”, acusa.
Índios, o alvo da vez
E o genocídio contra os povos indígenas se intensificou no primeiro ano do governo Bolsonaro: ainda que parcial, o número de assassinatos no campo no ano passado foi, por exemplo, superior ao de 2018, quando ocorreram 28 mortes. Detalhe: deste total, sete vítimas eram índios contra os dois assassinatos que aconteceram em 2018.
Segundo a CPT, o número de lideranças indígenas mortas em conflitos no campo em 2019 foi o maior em pelo menos 11 anos.
Ofensiva perversa
E a ofensiva contra os territórios indígenas por parte dos latifundiários, madeireiras e empresas mineradoras continua aumentando nesse início de ano.
Para citar um entre vários exemplos basta lembrar que na madrugada do dia dia 16 de janeiro último oito barracos do povo Guarani Kaiowá foram derrubados na retomada Nhu Vera, terra reivindicada como tradicional pelos indígenas e limítrofe à Reserva Indígena de Dourados, no Mato Grosso do Sul. A denúncia é do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
Segundo o CIMI, o trator modificado chamado de “caveirão” passou por cima das moradias improvisadas. Não houve feridos porque as famílias conseguiram fugir a tempo.
Por volta das 4 horas da madrugada o trator chegou ao acampamento da retomada. O barulho da máquina acordou os Guarani Kaiowá, que então rapidamente desocuparam os barracos antes de o caveirão iniciar a sequência de destruição. Homens que acompanhavam a ação incendiaram os escombros de madeira, lona e pertences pessoais dos indígenas.
Revoltados, os Guarani Kaiowá tentaram atear fogo no trator blindado com chapas de ferro e pequenas passagens para os canos das armas. A Polícia Militar foi acionada e ao chegar ao local, por volta das 6h30, conforme o relato dos indígenas, iniciou uma ação para dispersar os indígenas utilizando-se de tiros de bala de borracha e bombas de efeito moral. Os policiais permaneceram nas imediações até o final da manhã da quinta-feira (16).
“Eles destruíram os barracos e escoltados pela polícia começaram a plantar soja no lugar. A parentada tá dizendo que vai voltar para o lugar. Sabendo disso a polícia segue aqui e agora (começo da tarde) estão concentrados na Fazenda Hilda (uma das propriedades cujo dono é um dos principais antagonistas dos Guarani Kaiowá)”, explica Laurentino Guarani Kaiowá, que mora na retomada de Nhu Vera.
A intenção deste despejo forçado dos Guarani Kaiowá é a de plantar soja no lugar do acampamento. “Depois que a polícia chegou, iniciaram o plantio”, conta o indígena. “Se a gente não pode retomar mais nada, porque precisa esperar a Justiça, conforme disseram pra gente, eles também não podem derrubar os nossos barracos. Tá muito lento o Poder Público. Estão esperando matar um da gente?”, diz.
Os constantes tiros contra os indígenas e a ação do caveirão são definidos como “o horror” pelo Guarani Kaiowá. “Criança dormindo e vem esses pistoleiros e passam por cima do barraco. Isso é um horror pra gente. Pra mim isso é tentativa de homicídio. Vários indígenas atingidos pelos tiros. Um perdeu a visão, outro ficou paralítico, tem outro ainda no hospital. Nem com animal se faz isso daí. Se não punirem os mandantes, o conflito nunca vai terminar”, lamenta.
Antecedentes
Vale lembrar que durante 16 horas, entre os dias 2 e 3 de janeiro, cerca de 180 famílias Guarani Kaiowá das retomadas Nhu Vera, Nhu Vera Aratikuty, Nhu Vera Guasu e Boquerón, limítrofes à Reserva Indígena de Dourados, no Mato Grosso do Sul, foram alvos de seguranças privados de propriedades incidentes sobre o território indígena e do Departamento de Operações de Fronteira (DOF).
Sete indígenas terminaram feridos atingidos por tiros de bala de borracha e projéteis de arma de fogo. Dois com mais gravidade, sendo que um deles ainda está hospitalizado correndo o risco de perder a visão do olho esquerdo. Entre eles, há ainda um menino de 12 anos que perdeu três dedos da mão esquerda ao manipular uma granada deixada para trás pela polícia.
Para Paulo Cesar Moreira, “esse cenário e outros cenários de violência virou uma constante nas áreas indígenas do país e revela uma ofensiva sobre o povos indígenas que acontece de uma forma extremamente perversa porque é uma tentativa de eliminação. De eliminação mesmo!”
Em sua opinião, “o modo de vida do povo do campo não importa para o capital, não importa para os empresários e não importa para esse governo que está aí.”
Para o coordenador da CPT, o quadro é muito grave, tanto na perseguição e assassinato de lideranças indígenas e de sem terra, o que, segundo ele, é uma tentativa de minar as comunidades, de atacar a articulação política, de eliminar pessoas e submeter as comunidades a um estado de terror humano, político e psicológico, como nas declarações de que esses povos não têm direitos.
Barbárie e despejo
Na outra ponta dessa ação articulada, a partir do Palácio do Planalto e executada por uma espécie da tríplice aliança – governadores, Judiciário e a PM – contra os índios e os sem terra, se observa em todo o país um número crescente de despejos de sem terra acampados em latifúndios ocupados pelo MST e outros movimentos que lutam pela reforma agrária.
O crescimento dos despejos começou no governo Temer, e se intensificou no ano passado, com a posse de Bolsonaro. Houve aumento significativo no número de despejos em 2019, que, segundo a CPT, foi é 15%maior que os 1.124 despejos registrados em 2018, quando 11.225 famílias (56.125 pessoas) foram expulsas pela PM das área onde estavam acampadas.
De acordo com a economista Isolete Wichinieski, que também é da coordenação nacional da CPT, em 2018, outras 1.148 famílias foram expulsas dos acampamentos por pistoleiros dos fazendeiros que se dizem os verdadeiros proprietários das terras ocupadas pelos sem terra.
“Embora os números não estejam fechados, os levantamentos prévios mostram que essas expulsões, a exemplo dos despejos, também aumentaram no ano passado, pois incentivados pelo discurso de ódio do presidente Bolsonaro e do seu fiel escudeiro, o Secretário Especial de Assuntos fundiários, Luiz Antonio Nabhan Garcia. Os fazendeiros usam seus jagunços para expulsar os acampados do MST e outros movimentos que lutam pela reforma agrária”.
Conflitos no campo
Por outro lado, o relatório Conflitos no Campo 2018, da CPT, revela ainda que, naquele ano, 960.730 pessoas estiveram envolvidas em conflitos na zona rural brasileira, um aumento de 35,6% em relação a 2017.
Já nos conflitos pela posse da terra no mesmo ano foram 112.080 famílias envolvidas contra 106.180 famílias registrados, em um aumento de 11% em relação a 2017. O relatório conflitos no Campo 2019 só será divulgado pela CPT em abril.
No berço do MST,o latifúndio garante a logística do despejo emprestando carros e até aviões para a PM. Com relação aos despejos registrados no ano passado basta lembrar que apenas no Paraná, entre maio e início de dezembro de 2019, aconteceram nove despejos. Em consequência disso, 500 famílias, num total de 3 mil homens, mulheres e crianças, foram expulsas dos acampamentos onde viviam, plantavam e tiravam seus sustento.
As famílias expulsas só puderam levar as roupas e alguns pertences e foram impedidas de levar alimentos que já haviam colhido, que foram “confiscados” pelos PMs que participaram das operações de despejo, dividindo essa produção entre eles.
As lavouras não colhidas foram destruídas. E os móveis dos despejados foram jogados na beira da estrada. “Despejadas, famílias de sem terra foram jogadas nas estradas e hoje perambulam pelas ruas das cidades próximas aos acampamentos; outras estão abrigadas em assentamentos do MST, o que mostra a solidariedade entre os sem terra que lutam pelo reforma agrária”, conta Roberto Baggio, da coordenação estadual do MST .
Um exemplo dessa solidariedade, entre muitos, é o das 159 famílias despejadas do acampamento Quilombo dos Palmares que foram abrigadas no centro comunitário do assentamento Eli Vive, a 3 quilômetros do Quilombo dos Palmares.
Segundo Baggio, o último dos nove despejos que aconteceram no Paraná foi na madrugada dia 3 de dezembro último, quando 150 policiais militares fortemente armados cercaram o acampamento Sétimo Garibaldi, localizado na fazenda São Francisco, no município de Querência do Norte, e expulsaram 50 famílias que ali viviam e criavam gado, suínos e cultivavam grãos e hortaliças.
Um dia antes do despejo, e com o objetivo de amedrontar os acampados, aviões e helicópteros da PM deram rasantes sobre o acampamento provocando um clima de terror, principalmente entre as crianças.
Os despejos estão acontecendo em todo o país de uma forma muito mais rápida, e com muito mais violência, o que, no entender do coodenador da CPT, aponta para articulação entre o poder judiciário, os governo estaduais e as PMs e outras forças, como a bancada ruralista na Câmara dos Deputados.
De acordo com Paulo Cesar Moreira, a violência no campo vem aumentando a cada dia, em função da atuação de milícias rurais, formada por jagunços e pistoleiros, a soldo dos latifundiários e das grandes mineradoras.
“E isso é muito grave e se não houver punição dos responsáveis a situação tende a aumentar de uma forma assustadora”, alerta Moreira.
Em sua opinião, esse cenário que está se criando é consequência de pronunciamentos políticos de integrantes do governo, de parlamentares e do próprio presidente, que viaja ao exterior e anuncia que não haverá um centímetro de terra a mais para os povos indígenas.
“Ou seja, é o próprio Bolsonaro que incentiva de forma perversa as ações de criminosos que já atuavam e que agora se sentem incentivados e legitimados pelo próprio Estado”, afirma o coordenador da CPT.
Em seu entender, “lamentavelmente o cenário é de um acirramento deste conflitos e cada vez aumentará a invasão dos territórios indígenas, em razão da ganância do capital para exploração da água, do minério que a nossa natureza tem e o que ainda tem de preservado é o que se encontra nos territórios indígenas, quilombolas e nas áreas ocupadas pelos sem terra, que através da agroecologia estão devolvendo a saúde a fertilidade dessas áreas envenenadas pelos agrotóxicos”.
Para Paulo Cesar, a ação destruidora do agronegócio e mineradoras, a partir do dia do fogo, do aumento do desmatamento, da investida sobre os territórios indígenas, com grande violência, é algo que está na perspectiva política e institucional do governo Bolsonaro. Para ele, a barbárie que está acontecendo no campo hoje é consequência desse incentivo estatal.