Israel amplia, com 500 mortes, a guerra que não é capaz de vencer, mas que pode incendiar o Oriente Médio e o mundo. Uma cientista política libanesa relata, de Londres, os laços sociais e familiares que estão sendo destroçados pelo massacre
Por Loubda El Amine, compartilhado de Outras Palavras
Por Loubda El Amine | Tradução: Antonio Martins
Demorou um pouco para as pessoas entenderem o que estava acontecendo, quando milhares de pagers biparam e depois explodiram em todo o Líbano na semana passada: nos bolsos, nas mãos, na frente dos rostos; nas ruas, nos carros, em casa; em supermercados, escolas e escritórios. “Eu reportei os fatos à medida que surgiam, mas não entendi o que estava dizendo”, me disse um amigo jornalista. Quando ocorrem ataques e explosões no Líbano, como tem ocorrido frequentemente na história recente, as mensagens nos grupos de WhatsApp da minha família costuam chegar em cascata. Desta vez, nenhuma chegou. Soube mais tarde que as pessoas foram aconselhadas a não ligar ou enviar mensagens para proteger a identidade dos alvos, presumivelmente combatentes do Hezbollah. O silêncio foi preenchido pelas sirenes das ambulâncias.
Os milhares que perderam olhos e dedos, cujos rostos foram desfigurados e cujas virilhas foram dilaceradas; as dezenas mortas durante os dois dias de ataques com pagers; as dezenas mais que morreram e ficaram feridas no assassinato de um comandante do Hezbollah no dia seguinte; e os muitos outros – pelo menos 182, até o momento desta escrita – mortos no bombardeio desta manhã [de 23/9; um dia depois, as mortes são calculadas em pelo menos 500 (Nota de Outras Palavras)]no sul do país: são todas de meus compatriotas libaneses. Tenho menos ligação com eles por unidade cívica ou fervor nacional do que pela nossa experiência compartilhada das guerras e das tréguas inquietas entre elas.
Nasci durante a guerra civil libanesa, que durou de 1975 a 1990, e cresci ouvindo disparos de projéteis e bombas e escutando anúncios sombrios no noticiário. Meus pais me contaram suas próprias histórias. Meu irmão mais velho nasceu em 17 de setembro de 1982, quando as falanges de direita, apoiadas pelo exército israelense, que havia invadido Beirute, massacraram refugiados palestinos nos campos de Sabra e Shatila. Meu pai hasteou uma bandeira branca no carro enquanto levava minha mãe ao parto no hospital.
A guerra civil terminou quando eu tinha seis anos. O que me lembro mais vividamente são os bombardeios israelenses nos anos que se seguiram, quando eu tinha doze, quinze e depois 22. Atingiram pontes, aeroportos, usinas elétricas e edifícios nos subúrbios do sul. O vidro do meu quarto de infância tremia tão forte que eu tinha medo de que ele se quebrasse em cima de mim enquanto dormia.
Pensei muito sobre o último desses episódios, a guerra de julho de 2006, quando estive em Beirute no verão, enquanto o conflito entre o Hezbollah e Israel se intensificava. Ao decidir se deveria ficar ou partir, imaginei viver isso de novo, desta vez com três crianças pequenas. Eu aguentaria submetê-las a esses sons? Quando os aviões israelenses começaram a romper a barreira do som em Beirute — eles já vinham fazendo isso há algum tempo no sul —, soubemos que tínhamos que ir.
Os alvos dos ataques com pagers também são contra meu povo, em um sentido mais particular: pertenço à comunidade que vive nos subúrbios do sul de Beirute e no sul do Líbano, de onde o Hezbollah recruta seus membros. Pertenço a ela não tanto porque meus documentos de registro nacional me classificam como “muçulmana xiita”, mas porque cresci dentro de seus rituais, práticas e ideias.
Em 1979, quando se casaram, meus pais mudaram-se para o centro de Beirute, mas visitávamos com frequência avós, tios, tias e parentes nos subúrbios e vilarejos do sul. Nos últimos anos, a rua onde meus pais moram — que já foi lar de sunitas, drusos e armênios — tornou-se predominantemente xiita.
Os xiitas representam cerca de um terço da população do Líbano. O canto específico do mundo xiita no qual cresci incluía tanto os esquerdistas quanto os religiosos. Vários dos meus onze tios e quatro tias se juntaram ao Partido Comunista durante a guerra civil, quando os movimentos de esquerda e nacionalistas árabes eram ativos nos subúrbios do sul.
Os xiitas sentiam-se marginalizados na formação do Estado libanês, liderado pelas elites muçulmano-sunitas e cristãs. Eles também tendiam a ser mais pobres, menos educados e mais isolados do que seus compatriotas. Quando o Hezbollah ganhou destaque após a invasão de Beirute por Israel em 1982 e sua ocupação do sul, muitos xiitas passaram a ver o grupo como provendo o que o Estado não oferecia: segurança contra Israel, assistência social na forma de escolas e hospitais e um senso de dignidade.
O papel do Hezbollah na libertação do sul em 2000, após quinze anos de ocupação formal israelense, foi amplamente celebrado, mas os desacordos lentamente surgiram a respeito da contínua influência militar do grupo. Nos almoços de família, meus parentes discutiam sobre o direito do grupo de portar armas, seu envolvimento na guerra civil síria ao lado de Bashar al-Assad e suas relações com o Irã. A inimizade em relação a Israel, por outro lado, nunca foi tema de debate. A ocupação israelense do sul do Líbano constituiu nossa história recente compartilhada, e a ocupação das terras palestinas parecia uma continuação da história colonial britânica e francesa que moldou nossa região.
O Hezbollah predomina na vila do meu pai, que fica ao sul do rio Litani, logo do outro lado da fronteira com vilarejos do sul, que Israel havia ocupado. Na vila da minha mãe, mais ao norte e oeste, é o partido xiita Amal, fundado pelo clérigo Musa al-Sadr em 1974 como “o Movimento dos Privados”, que comanda e vence nas eleições. O Amal lutou — com o regime sírio — contra o Hezbollah e a Organização para a Libertação da Palestina na Guerra dos Campos nos anos 1980, mas desde então tornou-se aliado do Hezbollah. Seu líder atual, Nabih Berri, ocupou o posto de presidente do Parlamento – a principal posição dos xiitas no Estado – nos últimos trinta 32 anos. Durante nossa visita neste verão, vi num poste de luz perto do prédio onde meus pais moram uma foto de Berri e do líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, com a legenda “o par sagrado”. Mas o Amal carece de clareza ideológica, e da disciplina do Hezbollah. Para seus críticos, onde o Hezbollah é autoritário, o Amal é corrupto.
A libertação do sul deu a meus pais segurança para comprar um pequeno pedaço de terra e construir uma casa. Até outubro passado, eles passavam os fins de semana lá, e mais tempo durante as férias de verão quando nós os visitávamos. Eles mostravam aos netos como colher amoras e os apresentavam aos comerciantes locais, que, em nossa última viagem, cumprimentaram as crianças pelo nome. Todos estamos inscritos para votar na vila, até mesmo para as eleições municipais. Quando estava lá no momento certo, votei em pequenos partidos de esquerda, e suspeito que alguns parentes também, embora soubéssemos que o Hezbollah venceria.
Quando penso nos jovens que foram mortos pelos pagers detonados, minha mente se volta para os rostos de alguns que conheci nos últimos anos na vila. Eu não compartilho muitos de seus valores. Eles não apertam minha mão, e alguns desviam o olhar para evitar ver meu cabelo descoberto. Mas as pessoas ao redor deles também não necessariamente compartilham seus engajamentos. Nas famílias que conheço, alguns irmãos são mais religiosos do que outros, alguns pais estão mais cansados do envolvimento militar do que seus filhos, e muitas mães não querem entregar seus filhos por uma causa, por mais que acreditem nela.
O fato de não podermos conhecer os membros do Hezbollah de forma clara não se deve apenas à preocupação do partido com o sigilo. Também é porque seus membros, que carregam pagers, estão inseridos em redes de relações familiares, laços locais e solidariedades políticas. Seus parentes, as pessoas que vivem nas mesmas vilas e bairros, e aqueles cujas vidas se cruzam com as deles, os apoiam sem necessariamente concordar com todas as suas decisões, políticas ou ideias. Um pager que explode em um ambiente cotidiano, arrancando membros e cegando olhos, nunca inflige danos de maneira limitada, tanto porque inevitavelmente afeta civis quanto porque atinge seu alvo em meio ao seu mundo social. Isso espalha medo, mas também reforça solidariedades comunitárias — ou, pelo menos, a convicção de que Israel é o inimigo.
Já passamos por isso antes. A guerra de julho de 2006 foi tida como um momento de dúvidas sobre o Hezbollah entre seus apoiadores, mas também foi um lembrete de que Israel tinha a capacidade e a vontade de causar danos indiscriminados no Líbano.
Quando ouvi as notícias sobre as explosões dos pagers, eu estava buscando passagens para Beirute em dezembro. Para aliviar minha tristeza e culpa por termos encurtado nossa viagem neste verão, prometi voltar em breve: para ver meus filhos brincarem na casa onde cresci, para que eles compartilhem uma refeição com os filhos dos meus primos e amigos, e para ouvi-los falar em árabe na rua. Em minhas conversas com amigos e familiares no Líbano desde então, falamos menos sobre a possibilidade de irmos e mais sobre a possibilidade de que eles precisem partir.