‘Testar, testar, testar’: O que deu errado na estratégia brasileira para diagnóstico da covid-19

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Por Marcella Fernandes, compartilhado de Huffpost Brasil – 

Ministério da Saúde chegou a prometer 14,9 milhões de testes moleculares RT-PCR. Só 2,3 milhões foram processados até agora.

Desde março, mês em que a OMS (Organização Mundial da Saúde) declarou a pandemia do novo coronavírus, a orientação era de que todo caso suspeito fosse testado. Passados 4 meses, o uso de testes moleculares (RT-PCR), o tipo mais preciso para detectar o vírus, ainda é limitada no Brasil. Uma combinação de falhas na estratégia do governo federal junto com barreiras técnicas do setor é apontada como causa do cenário atual, de acordo com profissionais da saúde consultados pelo HuffPost Brasil.




“O governo preferiu não adotar as orientações técnicas pensando que era uma coisa simples e agora estamos pagando um preço alto. Muito difícil encarar mais de 80 mil óbitos como uma coisa tranquila”, afirma o pesquisador e professor de epidemiologia da Universidade de Brasília (UnB) Wildo Navegantes de Araújo.

Além de ser a forma mais precisa para saber a dimensão da contaminação, a testagem serve para definir políticas públicas, como rastreamento de contatos ou isolamento social. Um dos critérios da OMS para que sejam flexibilizadas medidas que restringem a circulação de pessoas é justamente a transmissão controlada do vírus por ao menos duas semanas, o que só é possível saber com uma testagem adequada.

O número de mortes causadas pela covid-19 ultrapassou 86 mil e o total de contaminados supera 2,3 milhões. Em números absolutos, o Brasil fica em segundo lugar em ambos os indicadores no ranking mundial, atrás apenas dos Estados Unidos.

Ainda que os números sejam altos, eles não refletem a realidade. Ao longo dos últimos meses, são diversas as evidências de subnotificação. Pesquisadores chegaram a apontar em abril que o número real de infectados poderia ser até 15 vezes superior aos dados oficiais.

Uma das causas da subnotificação é testagem limitada. Desde o final de junho, o Ministério da Saúde ampliou o critério de diagnóstico, em resposta à demanda de secretários estaduais e municipais que reclamavam do acesso aos exames. A mudança reforçou que a palavra final é do médico, de modo que não é obrigatório o resultado laboratorial para notificar o caso de covid-19.

De acordo com boletim epidemiológico divulgado na última semana pelo Ministério da Saúde, até o dia 21 de julho, foram distribuídas 5.004.116 reações RT-PCR. Em coletiva de imprensa na última sexta-feira (24), a pasta informou que 2,3 milhões desses exames haviam sido processados, sendo 1.406.132 na rede pública e 945.602 na rede privada.

Testes moleculares x testes rápidos

Apesar de o teste molecular ser o mais preciso, ele não foi a grande aposta do Ministério da Saúde. Enquanto pouco mais de 5 milhões desse tipo de exame foram distribuídos pela pasta, o total de testes sorológicos rápidos entregues soma 7,6 milhões. Desse montante, 2,9 milhões foram aplicados, segundo o ministério.

Esse tipo de exame detecta a presença de anticorpos no corpo, mas tem mais chances de um resultado falso negativo. Uma dos motivos da prevalência dos testes rápidos é o fato de terem sido doados por empresas, como a Vale, que contribuiu com 5 milhões de unidades.

ADRIANO MACHADO / REUTERS
Enquanto pouco mais de 5 milhões de testes RT-PCR foram distribuídos pelo Ministério da Saúde, o total de testes sorológicos rápidos entregues soma 7,6 milhões.

Ainda que tenha sido uma doação, o Ministério da Saúde poderia ter orientado o processo, na avaliação do pesquisador da UnB. “O Brasil aceitou naquele momento a oferta dos testes rápidos e preferiu expandir sua capacidade dessa forma, com todas as limitações que os testes rápidos têm. Faltou orientação técnica do ministério, porque são empresas privadas que não têm relação com a saúde. Entraram com a intenção de ajudar, mas cabia a mediação do Ministério da Saúde para dizer compra A ou não compra B”, afirma Araújo.

Para Zilton Vasconcelos, da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), é justificável medidas para ampliar o acesso a testes em tempos de pandemia, mas ele aponta a limitação dessa escolha para pesquisa. “Quando você têm vários testes sendo usados simultaneamente, a comparação é muito difícil, quase impossível. Como eu vou dizer que uma população têm mais exposição ao vírus ou outra se essas populações usaram testes diferentes para análise?”, questiona o pesquisador Fernandes Figueira, do Laboratório de Alta Complexidade do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente (IFF/Fiocruz).

Teste só para casos graves 

Na prática, a testagem ficou restrita principalmente aos casos graves, de pacientes internados ou em caso de morte, o que se reflete no percentual de resultados positivos. Segundo o boletim epidemiológico mais recente, com dados até 18 de julho, o indicador nacional é de 38,46%.

O número varia de acordo com o estado. Ao analisar os dados proporcionais à população, unidades da Federação com uma população menor têm mais resultados positivos, o que pode indicar uma facilidade em atender à demanda de testes local, de acordo com pesquisadores. A incidência de exames positivos por 100 mil habitantes varia de 1.833 no Amapá para 68 em Minas Gerais.

Para Araújo, da UnB, o Brasil errou na estratégia de vigilância ao priorizar a testagem em hospitais em detrimento de ações na atenção primária no início da crise. De acordo com ele, se houvesse agentes do programa Saúde da Família tivessem feito a identificação de pessoas com síndrome gripal sugestiva de covid, assim como o isolamento e rastreamento de contatos próximos, não teríamos tantos casos da doença. “O que aconteceu foi que muitas pessoas só foram diagnosticadas quando foram para o hospital e aí tiveram o tempo maior de transmitir para os outros”, afirma.

PEDRO VILELA VIA GETTY IMAGES
Na prática, a testagem ficou restrita principalmente aos casos graves, de pacientes internados ou em caso de morte, o que se reflete no percentual de resultados positivos. 

Qual o caminho do teste RT-PRC?

O teste RT-PCR detecta o vírus no período em que está ativo no organismo. Para que os laboratórios identifiquem corretamente os patógenos nas amostras, é preciso que uma série de etapas seja feita da maneira adequada. A primeira é a data de coleta da secreção feita pelo swab, um tipo de cotonete. Ela precisa ser feita do 3º dia após o início dos sintomas e até o 10º dia porque após esse período a quantidade de RNA tende a diminuir.

A conservação do material também interfere na viabilidade da amostra. O swab não pode ser contaminado. Preferencialmente, é para serem usados 3 cotonetes por paciente: um em cada narina e um na garganta.

Com a escassez do material, há situações em que apenas 1 swab foi usado, o que diminui a chance de encontrar o vírus. Após a coleta, o swab tem de ser conservado em um frasco com solução com líquido que tem ph estável, porém alguns laboratórios não têm esse material na quantidade adequada. Pesquisadores afirmam que é possível que amostras tenham se tornado inviáveis ao longo da pandemia.

Na bancada, são feitos procedimentos que transformam o RNA do vírus em DNA. Em seguida, o DNA é amplificado e sondas específicas detectam a presença do material genético do SARS-CoV-2 e chegam ao resultado.

Falta de reagente é obstáculo importante

A falta do reagente usado na primeira etapa laboratorial é um dos entraves no momento. Sem fabricação em escala industrial no Brasil, a maior parte desse material é importada. O Ministério da Saúde tem falhado nesse repasse, de acordo com os laboratórios estaduais (LACENs). “São erros estratégicos de logística, erros de raciocínio de quem conduz a vigilância”, afirma Wildo Araújo.

Integrantes do ministério afirmam que há uma dificuldade de aquisição do material importado devido à demanda global provocada pela pandemia. Profissionais do setor confirmam que essa limitação ainda existe, mesmo que a crise sanitária tenha arrefecido na China e na Europa. “Obter esses insumos na velocidade e na quantidade que a gente vem precisando para nosso país continua sendo um gargalo”, afirma Zilton Vasconcelos, da Fiocruz.

O setor privado também enfrenta o mesmo gargalo. “A principal limitação de uma ampliação é o kit de extração. Hoje não há produção nacional em larga escala nem no setor privado. Nós dependemos de produtos importados e há uma limitação da capacidade de produção dessas indústrias da Ásia, Europa e Estados Unidos. Eles trabalham com um modelo de alocação e a América Latina como um todo acaba recebendo uma proporção menor desses kits”, afirma Gustavo Campana, diretor médico da Dasa.

De acordo com Campana, desde o fim de fevereiro, foram feitos investimentos no setor privado para melhorar a demanda por diagnóstico. Ele citou como exemplo o teste chamado “sequenciamento de sanger”, que ainda não está sendo usado em larga escala pela empresa. “O que a gente tem feito muito é investido em inovação, trazido outras tecnologias, como sequenciamento genético, que possam auxiliar no aumento de capacidade produtiva e não necessariamente passam por essa etapa de extração”, afirma.

PEDRO VILELA VIA GETTY IMAGES
Pesquisadores afirmam que é possível que amostras tenham se tornado inviáveis ao longo da pandemia.

Laboratórios não estavam prontos 

A logística de processamento dos testes mudou ao longo da pandemia. Desde meados de março, todos os laboratórios estaduais passaram a contar com kits elaborados pela Fiocruz. Até então, os LACENs testavam casos suspeitos para doenças respiratórias comuns. Se desse negativo, enviavam para a Fiocruz, no Rio de Janeiro, ou para os outros dois laboratórios de referência: Instituto Evandro Chagas, em Belém (PA), e Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo.

Foram feitos investimentos para melhorar a capacidade laboratorial, mas ainda não é possível dizer que todas unidades dão conta da demanda. “Nossa capacidade de estrutura laboratorial para processamento de amostra na biologia molecular ainda é precária”,  afirma Zilton Vasconcelos, da Fiocruz.

De acordo com boletim mais recente do Ministério da Saúde, entre 19 de junho e 18 de julho, 72,53% dos resultados foram liberados de 0 a 2 dias, 18,4% de 3 a 5 dias e 9,07% dos exames foram liberados acima de 6 dias. No início da pandemia, a demora chegava a mais de duas semanas.

Para o pesquisador, é preciso garantir que esse esforço de ampliação da capacidade dos LACENs seja duradouro. ”Um dever de casa do Ministério da Saúde e de todos atores envolvidos de realmente deixar essas equipes e estruturas de laboratório da rede preparadas para uma próxima. Não vai ser a última epidemia. Não vai ser o último surto que a gente vai ter. Não tenha a menor dúvida”, afirma Vasconcelos.

Um dever de casa do Ministério da Saúde e de todos atores envolvidos de realmente deixar essas equipes e estruturas de laboratório da rede preparadas para uma próxima. Não vai ser a última epidemia.Zilton Vasconcelos, da Fiocruz.

Uma das soluções do governo federal foi uma parceria com o grupo Dasa, firmada em abril. De acordo com o diretor médico da empresa, foram processadas em torno de 50 mil amostras, a maior parte do município de São Paulo. A meta é ampliar a capacidade de processamento – hoje entre 8 mil e 10 mil testes por dia – para 30 mil, de acordo com o contrato. “Esse número tem como premissa essa definição dos pontos de coleta e o aumento da capacidade produtiva, recebendo equipamentos e insumos do Ministério da Saúde”, afirma Campana. Cabe ao governo federal repassar os reagentes, por exemplo.

A parceria funciona da seguinte maneira: o município ou laboratório estadual comunica a necessidade ao ministério, que define a distribuição. O centro operacionalizado pela Dasa fica em Barueri (SP). Após esse pedido, demora alguns dias para haver uma integração dos sistemas.

“Uma vez integrado o sistema, a gente começa a receber as amostras. Essa amostra é cadastrada no GAL [Sistema Gerenciador de Ambiente Laboratorial] na ponta, gera um código de barras, a gente rastreia esse processo de transporte, ele entra de forma integrada no nosso sistema, a gente produz o resultado e devolve dentro do GAL”, explica Campana.

WASHINGTON ALVES / REUTERS
De acordo com boletim mais recente do Ministério da Saúde, entre 19 de junho e 18 de julho, 72,53% dos resultados foram liberados de 0 a 2 dias, 18,4% de 3 a 5 dias e 9,07% dos exames foram liberados acima de 6 dias. 

O mercado de diagnósticos no Brasil

O gargalo de importação de reagentes para testes moleculares poderia ser resolvido se o Brasil fabricasse esse tipo de material. O Instituto Carlos Chagas, unidade da Fiocruz em Curitiba (PR), tem trabalho nisso, mas ainda não em escala nacional. “A gente tem que investir nacionalmente em estruturas capazes de produzir esse material. É um insumo estratégico que a gente precisa ser capaz de produzir principalmente para situações como essa que a gente está passando agora, em um momento de alta demanda”, afirma Zildo Vasconcelos.

Criar uma indústria desse tipo de tecnologia no Brasil também traria autonomia para lidar com outras doenças. No surto de zika, iniciado em 2015, o mesmo tipo de insumo era usado para diagnóstico. “Se o Brasil consegue produzir produtos de qualidade com preço acessível não interessa qual a doença que está olhando”, afirma o pesquisador da Fiocruz. “Acho que é uma questão de redimensionar quais são as prioridades”, completa.

Diversos fatores foram apontados por especialistas como indicadores de que o Brasil tem potencial para produzir esse tipo de insumo. Além da população de mais de 200 milhões de habitantes – o que seria um mercado considerável – hoje a Fiocruz e o Instituto Butantan são referência mundial na produção de vacina e exportam esse tipo de produto para outros países.

“O que você precisa, nesse sentido, é da orientação técnica adequada. Várias universidades brasileiras têm iniciativas de criação de kits de diagnóstico usando vários princípios distintos, mas isso requer estímulo orçamentário. E aí tem de sair do movimento de importar a tecnologia e desenvolver a sua tecnologia. Você ganha royalties, responde à epidemias e consegue repassar esses produtos, como o Brasil faz com várias vacinas”, afirma o pesquisador da UnB.

Araújo lembra que esse tipo de política pública pode impactar nas próximas epidemias. “O SARS-CoV-2 é um dos vírus respiratórios emergentes, mas temos um potencial de outros vírus que vão infelizmente nos trazer problemas. Se eu quero combater um vírus novo, eu tenho de ter estímulo à ciência e tecnologia para fazer diagnóstico. Para responder à altura de um país desse tamanho”, completa.

Se eu quero combater um vírus novo, eu tenho de ter estímulo à ciência e tecnologia para fazer diagnóstico. Para responder à altura de um país desse tamanho.Wildo Araújo, pesquisador da UnB e epidemiologista

Para montar uma indústria como essa, é necessário um investimento alto. No setor privado, a pandemia tem motivado discussões nesse sentido. ”Nunca foi tão clara a necessidade de ter uma área específica de desenvolvimento em laboratório que seja tão estratégica. Essa é uma conversa que a gente está tendo, planejando investimentos em pesquisa e desenvolvimento para que a gente não tenha novos riscos futuros”, afirma Gustavo Campana, da Dasa.

Ministério da Saúde prometeu testar 1 em cada 5 brasileiros

Em 18 de março, 7 dias após a OMS declarar a pandemia, o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, criticou a recomendação da testagem em massa. “Do ponto de vista sanitário, é um desperdício de recursos preciosos para as pessoas (…) Uma coisa é ter um país como a Coreia do Sul, que não é muito maior que o Sergipe, a Bahia. É totalmente diferente de um continente como o Brasil”, afirmou.

Em 24 de março, a pasta prometeu 14,9 milhões de testes RT-PCR, sendo 2 milhões disponibilizados pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e outros 600 mil pagos pela Petrobras. Outros 1,3 milhão seriam bancados por empresas privadas, de forma gradual, começando com 440 mil em abril. Por fim, havia uma previsão de 1 milhão para os 3 meses seguintes, via Fiocruz. Também estava em negociação uma compra pública de outros 10 milhões de unidades. Na época, os laboratórios públicos tinham capacidade de produção de 6.700 testes por dia.

No início de abril, apenas 82,6 mil testes moleculares haviam sido entregues. Um mês depois, quando o comando da pasta era de Nelson Teich, o número era de 1.638.816. Ainda assim, estava longe da promessa feita.

O segundo ministro da saúde no período da pandemia anunciou que 46 milhões de exames seriam ofertados, sendo 24 milhões do tipo RT-PCR. A estratégia prometia testar 1 a cada 5 brasileiros, incluindo tanto exames moleculares quanto sorológicos.

Na gestão do general Eduardo Pazuello, ministro interino na Saúde, a diretriz de testagem se distanciou mais ainda dos laboratórios, com a ampliação do diagnóstico clínico. “O diagnóstico é feito pelo médico. Ele erroneamente foi classificado apenas como teste”, afirmou o militar em coletiva de imprensa na última terça-feira (21).

Esse tipo de diagnóstico também foi adotado em outras epidemias no Brasil, devido à “dificuldade histórica da capacidade laboratorial”, de acordo com o professor de epidemiologia da UnB. “Durante uma epidemia de uma doença nova, de fato alterações de vigilância acontecem. O problema é a inconsistência do tratamento dos dados e do sistema de informação”, afirma Araújo.

Em 15 de julho, integrantes do Ministério da Saúde informaram, em entrevista coletiva, que 10 milhões de testes RT-PCR – acondicionados no almoxarifado central da pasta – seriam distribuídos conforme a demanda dos estados e a própria capacidade de armazenamento dos laboratórios estaduais. “A cada semana, nós vamos distribuindo de acordo com critérios epidemiológicos e de acordo com a capacidade dos LACENs de testagem”, afirmou o secretário de Vigilância Sanitária da pasta, Arnaldo Correia de Medeiros.

De acordo com o sanitarista, nos laboratórios estaduais em que for excedida a capacidade de testagem, os responsáveis devem comunicar o ministério, que irá autorizar o envio das amostras para a Fiocruz, no Rio de Janeiro, ou para o centro da Dasa, em São Paulo. De acordo com ele, um terceiro centro, no Ceará, também ligado à Fiocruz, estaria disponível “em breve” para esse suporte.

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