É falacioso o argumento liberal de que elevar os gastos públicos, mesmo que para combater flagelos humanos como a pobreza extrema e a fome, e ainda que temporariamente, desorganizaria a economia, aumentando juros e inflação. Segundo esta visão, beneficiar os pobres prejudicaria… os pobres
Por André Luiz Passos*, Brasil Debate, compartilhado de Pragmatismo Político
Para começarmos essa importante discussão, é prudente delinear uma breve explicação sobre o que é o tão comentado Teto de Gastos.
Trata-se de um regime de controle das contas fiscais, aprovado em dezembro de 2016 por meio da Emenda Constitucional 95, para vigorar a partir do ano de 2018. O objetivo é o de impedir o crescimento real das despesas primárias federais, englobando o Orçamento da União e o Orçamento da Seguridade Social, por um período de 20 anos – admitida a possibilidade de revisão após decorridos 10 anos.
A Lei permite tão somente o reajuste do total de despesas pela variação do Índice de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA, do IBGE, do ano anterior, ou seja, repõe apenas o desgaste do valor da moeda pela inflação oficial.
O mecanismo legal permite a realocação de valores entre os itens do orçamento, mas veda qualquer crescimento do total de gastos acima da inflação do ano anterior. Algumas despesas ficaram de fora desse controle, como os repasses constitucionais a estados e municípios e – é importante notar – as despesas com juros e encargos da dívida pública, que não são considerados gastos primários.
↗ Onde estão os resultados do teto de gastos?
O grupo de economistas fora do mainstream se colocou contrariamente à sua adoção desde o princípio. Os principais argumentos utilizados eram o do excesso de rigidez da regra e seu tempo de duração; e o temor de que os gastos sociais – que beneficiam majoritariamente um setor da sociedade com menos voz política – e os investimentos terminariam por ser esmagados, dado que outros gastos são de difícil compressão e a despesa previdenciária tem um crescimento vegetativo contratado, devido ao envelhecimento da população.
Os fatos não tardaram a dar razão aos críticos do Teto de Gastos. Já no ano seguinte ao da entrada em vigor das restrições fiscais – 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro – foram realizados gastos extra teto pelo governo. Portanto, ainda antes das emergências frequentemente utilizadas para justificar a necessidade de gastar-se além do permitido pela Lei: a pandemia de COVID-19 e a guerra no leste europeu, o Teto de Gastos já se provava disfuncional. Com a eclosão desses eventos de impacto mundial, mais e maiores ajustes ao Teto foram permitidos.
De fato, segundo cálculos do economista Bráulio Borges, do IBRE-FGV, o governo Bolsonaro excedeu o Teto de Gastos em cerca de 795 bilhões de reais em seus pouco menos de quatro anos de duração.
O investimento está em seu menor nível histórico, e já é insuficiente para pelo menos repor a depreciação dos bens públicos, ou seja, de fato ocorre um desinvestimento. Da mesma forma, os gastos com saúde – ainda em plena pandemia – educação, cultura, ciência e tecnologia foram deprimidos ao nível da irresponsabilidade.
São notórios os cortes no programa Farmácia Popular, que beneficia a dezenas de milhões de brasileiros que precisam de medicamentos de uso contínuo; nas verbas da merenda escolar, propiciando imagens lamentáveis de quatro crianças compartilhando apenas um ovo como refeição. A tabela de remuneração do SUS não é reajustada há anos; o governo cortou até o nível da inviabilização na proposta de orçamento para 2023 as verbas para pobreza menstrual e combate à AIDS; não há vacinas suficientes para a imunização das crianças, e não apenas contra a COVID-19. A cobertura vacinal para doenças que acreditávamos já erradicadas, como sarampo e poliomielite, está em níveis alarmantes.
As verbas para pesquisa, a quantidade e o valor das bolsas de pós-graduação estão em seus mais baixos patamares históricos. Crianças nas escolas públicas, principalmente as ainda em alfabetização, acumulam déficits de aprendizado devidos ao inevitável fechamento das salas de aula, que devem ser urgentemente compensados.
Concursos públicos foram cancelados, exceto para as polícias da União, vistas como majoritariamente compostas por apoiadores do governo. Com isso, equipes de fiscalização e controle do meio ambiente foram desmanteladas, e o que restou delas desmoralizado, para felicidade de desmatadores e grileiros de terras públicas, garimpeiros e pescadores ilegais, contrabandistas de madeira e ouro, entusiastas de Bolsonaro.
Serviços públicos essenciais estão severamente subfinanciados, e os servidores, há anos sem reajustes salariais, desmotivados. As Universidades e Institutos Federais, assim como órgãos da Administração Direta, estão sob constante ameaça de shutdown por falta de recursos para as despesas mais corriqueiras. De fato, a Polícia Federal acaba de anunciar a paralisação da emissão de passaportes por falta de verbas. O governo anuncia para 22 de novembro mais um congelamento de despesas, do qual ainda não conhecemos a extensão e as possíveis consequências.
Para completar o cenário de desolação, a proposta orçamentária do governo Bolsonaro para 2023 não passa de uma peça de ficção. Não há verbas suficientes para a manutenção dos programas em funcionamento, para a operação da máquina pública ou para o prosseguimento das milhares de obras paralisadas.
O orçamento secreto, mecanismo pelo qual Jair Bolsonaro entregou às parcelas fisiológicas do Parlamento o controle de 16,5 bilhões de reais em 2022 (a proposta no orçamento de 2023 alcança 19,5 bilhões de reais) em troca de apoio político e eleitoral, de forma nada transparente, contraria frontalmente um dos princípios constitucionais da administração pública – e já começa a render os primeiros escândalos nas páginas policiais. Essa excrescência – ilegal e imoral – cresceu como uma hidra, comprimindo outros gastos voltados à população mais vulnerável.
A proposta orçamentária que o governo Bolsonaro lega à futura administração teria de ser inevitavelmente revisada, por ser inviável sob qualquer aspecto. Tal como em cada um dos quatro anos do governo Bolsonaro, seria impossível ajustá-la para cumprir suas funções mais básicas respeitando a draconiana regra do Teto de Gastos.
Assim, uma medida feita para perdurar por 20 anos não resistiu mais do que apenas um ano. A sua rigidez, que alegadamente forneceria tanto uma previsibilidade da trajetória da dívida como uma mais eficiente alocação dos gastos públicos, rapidamente se converteu em desmoralização, e não apenas pelo escandaloso uso de verbas públicas com a finalidade de tentar reeleger Bolsonaro.
Vivemos num mundo de incertezas, e é precisamente por isso que devemos evitar engessar as políticas macroeconômicas, o que retira do governo qualquer margem de manobra. Tantas exceções têm sido necessárias que há muito já não existe um Teto de Gastos tal como foi proposto, mas apenas a intenção de impor um constrangimento legal sobre um eventual governo com preocupação com o caos social em que estamos mergulhados, visto que não foram percebidas reações de monta aos muitos e graves abusos com verbas públicas por parte do governo Bolsonaro nas instituições, bem como no mercado financeiro e entre seus defensores incondicionais na grande imprensa.
Para buscar pacificar a questão, precisamos partir do entendimento de que o Teto de Gastos fracassou redondamente em todas as suas alegadas finalidades, e é urgente que seja revogado. Para a tranquilidade da fração da sociedade que detém a dívida pública, há que se colocar outros mecanismos em seu lugar. É necessário então pactuar regras fiscais que não busquem impor uma determinada visão de mundo, os interesses de uma classe social sobre toda a sociedade, mas um conjunto de regras que dificulte aventuras fiscais, mas que ao mesmo tempo permita que o Estado cumpra suas funções básicas, atue nas emergências e não abandone frações expressivas da população à própria sorte.
Da mesma forma, uma boa regra fiscal deve excluir das restrições a parte mais nobre dos gastos públicos: o investimento. Nos momentos de crise, já ensinou Keynes, o capital prefere buscar refúgio na liquidez. Cabe então ao Estado realizar o investimento autônomo, que termina por vitalizar toda a economia, reativando também o investimento privado.
Uma boa regra fiscal deve contemplar uma dimensão anticíclica: o momento de poupar recursos públicos deve ser durante o ciclo de expansão, não durante o ciclo de retração da economia. O Estado deve passar a ser parte da solução, ao invés de ser parte do problema.
A primeira lição que devemos extrair dessa desastrada opção de regra fiscal que tem sido o Teto de Gastos é evitar o excesso de rigidez. Para começar, retirar a blindagem constitucional. Emendas à Constituição exigem três quintos dos votos totais nas duas Casas Legislativas, em duas sessões de votação em cada Casa, tornando moroso e difícil qualquer processo de negociação de mudanças.
O nível de Lei Complementar, que exige maioria simples dos votos totais nas duas Casas Legislativas, pode ser o suficiente para conferir estabilidade às regras fiscais sem engessá-las, e ao mesmo tempo permitir alguma agilidade na resposta a eventualidades. Da mesma forma, não é adequado controlar apenas os gastos, sem levar em conta o crescimento e o envelhecimento da população, a dinâmica de crescimento dos preços relativos (preços essenciais na área da saúde têm crescido sistematicamente acima da inflação oficial) e o comportamento das receitas.
A regra do Teto de Gastos é tão pouco racional que se a receita crescer acima das despesas – hoje se discute rever as isenções tributárias, o que tem o potencial de aumentar a receita pública em até 450 bilhões de reais – a folga orçamentária não pode, por lei, ser utilizada para reforçar as despesas.
Há propostas sob análise que buscam contemplar mais variáveis que não apenas os gastos, como a trajetória da relação dívida-PIB, e que colocam as metas sob uma perspectiva plurianual, o que permitiria acomodar eventuais solavancos sem necessariamente violar a Lei.
Quem sabe incluir de alguma forma nas restrições fiscais um relevante item da despesa, convenientemente deixado de fora do Teto – os juros da dívida pública, que consumirão centenas de bilhões de reais em 2022 e são de longe o mais vultoso item da despesa orçamentária.
O mais importante é compreender que a situação de fome e pobreza extrema, a dinâmica do mercado de trabalho e renda, a mudança no padrão demográfico, as muitas carências de infraestrutura social, urbana e econômica não admitem a persistência de políticas que promovem o esmagamento do Estado e a manutenção de privilégios tributários injustificáveis para os mais ricos, que conduzem o país a níveis cada vez mais insuportáveis de iniquidade e miséria.
Os mais bem aquinhoados em nossa sociedade crescentemente desigual precisam compreender que, se não revertermos a tendência à destruição de direitos sociais com a finalidade de desequilibrar a distribuição funcional da renda em favor do capital, caminhamos para um esgarçamento do tecido social e para a condenação de toda uma geração à estagnação e ao desalento, o que certamente terá consequências tão graves quanto imprevisíveis.
Economia não é meramente um conjunto de regras e políticas de natureza técnica e soberana; é antes subordinada à decisão política do modelo de sociedade em que queremos viver e progredir. Não cabe aos economistas decidir o que é certo, ou técnico (em oposição ao que seria ideológico, como se toda decisão econômica não o fosse).
Cabe à sociedade como um todo, com suas mediações no campo da política, decidir os modelos de Estado e tributação; proteção social; gastos públicos; políticas industrial, de preços e abastecimento, emprego e renda, entre outras. Aos economistas caberia apenas manejar o conjunto de políticas econômicas mais adequado ao resultado que se almeja alcançar.
Quando os economistas liberais – que colocam o mercado acima de qualquer outra consideração, inclusive acima da vida e dignidade humanas – e seus ardorosos advogados na mídia criticam uma determinada opção de política econômica, o que na verdade fazem é se opor às decisões políticas que a orientaram. Não é à política macroeconômica que confrontam, mas à visão de mundo da qual discordam e que busca distribuir melhor a riqueza que aparentemente pensam merecer por direito divino.
É falacioso, e várias vezes negado pela observação empírica, o argumento de que elevar os gastos públicos, mesmo que para combater flagelos humanos como a pobreza extrema e a fome e ainda que temporariamente, desorganizaria a economia, aumentando juros e inflação, como se houvesse determinações fixas, tal como certezas matemáticas, em Economia. Assim, em sua visão, beneficiar os pobres prejudicaria… os pobres.
Na verdade, o que realmente temem não é pela sorte dos pobres, é serem chamados a contribuir com seu justo quinhão para a construção de uma sociedade mais equânime e inclusiva. Seu verdadeiro medo é serem, como diz o presidente Lula, incluídos no Imposto de Renda, e para tanto defendem com tanto afinco um ajuste fiscal que se dê exclusivamente pela via do corte de despesas, custe o que custar. Exceto, naturalmente, aquelas despesas que os favorecem.
A agenda liberal com a qual estão comprometidos, o equilíbrio fiscal com o qual se mostram tão preocupados – um tanto tardiamente, diga-se – perdeu a eleição. A sociedade rejeitou as agendas de restrições fiscais a qualquer custo, mesmo as que se apresentaram como “terceira via”. O eleitor percebeu que não passam de defensoras da mesma política de austeridade fiscal, embora com certa sensibilidade social, e que não explicavam como atender o oceano de necessidades do povo pobre sem elevar os gastos de natureza social e arriscar o equilíbrio fiscal que têm como o valor mais alto.
São igualmente liberais, advogados das mesmas políticas concentradoras da renda e da riqueza hoje em vigor, embora tenham bons modos à mesa, em contraste com o governo que finda.
Lula sabe que conceder demais ao mercado e seus fiéis servidores condenará o seu governo ao fracasso e o povo à ruína. Manchará o seu legado político, relegando a esquerda a anos de ostracismo. Mas nem por isso devemos esperar cavalos de pau, soluções milagrosas, ver diversos interesses poderosos contrariados a um mesmo tempo. Teremos de ter sabedoria e paciência. Estamos navegando em um mar de sargaço, os obstáculos são muitos e complexos. Entendamos que nem todas as nossas aspirações – e nem mesmo as de Lula – poderão ser atendidas no espaço de apenas quatro anos. Procuremos moderar o fogo amigo, entendendo sempre que é preciso, agora mais do que nunca, observar para qual moinho levaremos a nossa água.
*André Luiz Passos Santos e economista, doutorando em Desenvolvimento Econômico pela UNICAMP e membro da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia.