Por Júlia Dias, publicado em BBC Brasil –
Os sons de tiros e de helicóptero encobriram aos poucos as notas tocadas em violoncelos por crianças. Em poucos minutos, os alunos da escola municipal Medalhista Olímpico Lukas Saatkamp, no Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro, estariam aglomerados no corredor, em busca de refúgio longe das janelas.
Houve pânico e mais de duas horas de correria, na manhã de segunda-feira (6/5), em mais uma operação policial na Maré.
Para tentar distrair as crianças, professores do projeto social Orquestra Maré do Amanhã começaram a tocar. Myllena Rosário, de 20 anos, tentava acalmar seus alunos de 9 a 12 anos sem conseguir, ela mesma, conter os próprios nervos. “Eu estava desesperada também”, conta Rosário, moradora da Maré e professora de violoncelo em um dos núcleos.
“Foi um horror. Porque além de ter caveirões na rua, tinha helicóptero atirando de cima. Era muita gente correndo lá fora. Não havia para onde ir, tivemos que ficar no corredor esperando o tempo passar, ouvindo o helicóptero ir e voltar, as crianças desesperadas”, diz ela, que mora perto da escola. “É muito complicado o que a gente passa aqui. O aprendizado é muito lento por causa dessas questões. Quando não é falta de luz, falta de água, é tiroteio”, desabafa.
A operação conduzida pela Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), da Polícia Civil, deixou oito mortos e três feridos, entre elas uma criança, de acordo com a ONG Redes da Maré. Em uma praça, a entidade contou e marcou com tinta 20 marcas de tiros no chão, disparados de cima para baixo.
Moradores afirmam que o helicóptero – apelidado na comunidade de “caveirão voador” – foi usado como plataforma de tiro, e vídeos compartilhados nas redes sociais pela Maré Vive mostraram a aeronave dando voos rasantes sobre as casas acompanhados de fortes sons de disparos.
Questionada, a Polícia Civil não confirmou se os tiros partiram do helicóptero e informou que a operação foi realizada para prender homens acusados de envolvimento na guerra entre facções criminosas na comunidade do Salgueiro, em São Gonçalo.
Há quase um ano, outra operação com uso de helicóptero na Maré deixou sete mortos – entre eles Marcos Vinícius da Silva, de 14 anos, baleado com uniforme escolar – e motivou ação da Defensoria Pública pedindo que o Estado “se abstenha de utilizar aeronaves para efetuar voos rasantes e realizar disparos de arma de fogo em direção em locais de densa aglomeração populacional, de moradias, escolas e equipamentos públicos”.
O pedido foi negado pela Justiça, e a Defensoria agora aguarda julgamento do recurso que apresentou.
“Doutrina Witzel”
A operação acirrou questionamentos à política de segurança do governador Wilson Witzel (PSC), que defende o uso de snipers para matar à distância pessoas que sejam vistas portando fuzis.
No sábado, Witzel embarcou em um helicóptero com um atirador de elite e membros da equipe da Core para sobrevoar áreas conflagradas na cidade costeira de Angra dos Reis. Ele postou vídeos em suas redes sociais anunciando a missão de “botar fim na bandidagem”.
Diante dos questionamentos sobre as ações em Angra, Witzel disse tratar-se de uma operação de reconhecimento de terreno para que agentes das polícias Militar e Civil pudessem entrar na comunidade. “Faz parte do meu trabalho reconhecer essa situação, como nenhum outro governante fez, participar ativamente junto com a polícia daquilo é a obrigação do governante”, afirmou.
Recentemente, o governador disse ao jornal fluminense O Globo que os atiradores de elite já estão sendo usados, mas “não há divulgação”. “O protocolo é claro: se alguém está com fuzil, tem que ser neutralizado de forma letal”, afirmou.
A Comissão de Defesa do Estado Democrático de Direito da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio (OAB-RJ) estuda se Witzel pode ser acusado criminalmente por suas declarações.
A Comissão de Direitos humanos da Assembleia Legislativa do Rio vai apresentar uma denúncia à ONU e à Organização dos Estados Americanos (OEA) contra o que chama de “política de abate” de Witzel.
Além disso, um grupo de trabalho formado neste ano por entidades como o Ministério Público Federal, a OAB, a Defensoria Pública e organizações da sociedade civil lançou, no fim de abril, nota técnica analisando as falas do governador e tecendo críticas ao que chama de “Doutrina Witzel”.
De acordo com a nota, “as declarações reiteradas do governador” são contrárias ao marco legal, contrárias aos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário e não são amparadas pelo direito à liberdade de expressão, “à luz dos deveres de altas autoridades para com o respeito aos direitos humanos”.
À luz dessa argumentação, o grupo conclui que as declarações de Witzel podem ser entendidas como “estímulo à violência ilegítima contra grupos socialmente vulneráveis” e “ensejar a responsabilização internacional do país.”
“A política de matar do Estado, que já existia, está sendo incentivada de forma muito explícita e escancarada, e essa mensagem está produzindo esses efeitos”, diz o defensor Daniel Lozoya, do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh) da Defensoria Pública do Rio.
“A ordem é matar”
Nas horas que se seguiram à operação de segunda, equipes da Redes da Maré saíram a campo para contabilizar as consequências da operação. De acordo com relatos feitos por moradores à ONG, os oito jovens foram mortos em uma mesma rua no Conjunto Esperança, em duas casas muito próximas. As testemunhas citam indícios de execução de acordo com essas informações, dois deles levantaram as mãos em rendição aos serem abordados, falando “perdi, perdi”, e agentes do Estado atiraram após afirmarem que “a ordem é matar”.
Questionada sobre a denúncia, a Polícia Civil não respondeu aos pedidos de informação feitos pela reportagem da BBC News Brasil. Informou apenas que “houve resistência dos criminosos e oito suspeitos de fazerem parte do tráfico foram baleados e morreram no confronto”. Outros três foram conduzidos à delegacia. Os agentes apreenderam sete fuzis, três pistolas, 14 granadas, drogas e cerca de R$ 35 mil em espécie.
“Todos os protocolos para a realização da operação foram tomados”, diz a assessoria de comunicação do órgão. As mortes estão sendo investigadas pela Delegacia de Homicídios da capital fluminense.
Lidiane Malanquini, da Redes da Maré, afirma que houve “mais um dia de violações de direitos na Maré, em que crianças não conseguiram estudar e moradores não conseguiram trabalhar”. Ela se queixa da lentidão da Justiça para julgar o recurso apresentado pela Defensoria Pública coibindo o uso de helicópteros, sem dar uma resposta aos problemas que moradores de favelas como a Maré enfrentam.
“Quantas pessoas vão ter que morrer para que se entenda que é inadmissível o uso de helicóptero como plataforma de tiros dentro de um bairro, dentro da cidade?”, questiona, afirmando que moradores viram policiais descendo a aeronave de rapel enquanto davam tiros.
“Se esses jovens estavam sendo presos em flagrante delito, o papel da polícia seria conduzir para a delegacia, nunca executar. Nunca matar. A gente não tem pena de morte no Brasil”, diz Malanquini.
Para o cientista político André Rodrigues, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) em Angra dos Reis, o discurso de Witzel – e falas como a de que snipers vão “mirar na cabecinha e… fogo” – incentivam execuções ilegais por parte de agentes do Estado.
“É muito grave que o governador admita publicamente que está ordenando as tropas sob seu comando a atuar à margem da lei, por um entendimento torto da legalidade”, afirma.
Nos primeiros três meses deste ano, o Rio bateu recorde de mortes por intervenção policial. Foram 434 mortes no período, uma média de quase cinco mortes por dia – a maior taxa nos 21 anos do registro.
Pedido de suspensão
No dia 20 de junho de 2018, uma operação na Maré com helicóptero matou seis suspeitos de envolvimento com o tráfico de drogas e o estudante Marcus Vinícius, baleado na barriga com o uniforme escolar da rede municipal.
No mesmo dia, a Defensoria Pública fez um pedido, no bojo de uma ação civil pública, para suspender essa forma de uso de helicópteros como plataforma de tiros e dando voos rasantes em operações policiais.
De acordo com o defensor público Daniel Lozoya, não há lei que o permita nem que o proíba o uso de helicópteros em operações.
Em reação ao pedido, a Secretaria de Segurança Pública, ainda sob intervenção federal, editou a Instrução Normativa 13, de 2018. “É uma regulamentação mínima do uso de helicópteros em operações policiais, mas na prática legitima o uso das aeronaves, afirmando que os tiros não podem ser dados no modo rajada, só no modo intermitente de disparos”, diz Lozoya.
A Defensoria aguarda agora a resposta da Justiça sobre o recurso pedindo a suspensão dessa forma de uso de helicópteros em operações policiais, alegando riscos tanto para cidadãos quanto para policiais em serviço – e enumerando exemplos dos riscos, como a morte de três PMs em 2009 depois de ter seu helicóptero abatido por traficantes no Morro do João, na zona norte do Rio. “A PM não usa helicópteros em operações desde então”, diz Lozoya.
Para André Rodrigues, da UFF, o uso de helicópteros como plataforma de tiros tem impacto “brutal” para comunidades. “Como você garante a precisão de disparos com o helicóptero em movimento, disparando sobre uma região saturada de casas e moradores?”, questiona. “Isso não apenas abre a porta para o extermínio de pessoas, como não tem eficácia para reduzir a criminalidade nessas áreas.”
“Essa tática mobiliza o imaginário dos mais infantis sobre o combate à criminalidade. É quase uma alegoria do superherói bonzinho que está combatendo o mau voando sobre a cidade”, condena.
“Política homicida”
Na segunda-feira, 46 deputados federais eleitos pelo Estado do Rio recusaram o convite do governador Wilson Witzel para uma reunião sobre a reforma de Previdência, em protesto contra sua política de segurança. Eles divulgaram uma nota condenando a “política homicida que vem sendo posta em prática no Estado e divulgada com fervor nas redes sociais do governador”.
“O governador do Rio não pode, por decisão sua, instaurar a pena de morte, em frontal desrespeito à Constituição brasileira, ou colocar em risco a vida de moradores dessas comunidades”, diz a nota, que tem signatários como Jandira Feghali (PCdoB), Benedita da Silva (PT), Alessandro Molon (PDT) e Marcelo Freixo (PSOL).
No Rio, a deputada estadual Renata Souza (PSOL), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alerj, afirma que sua equipe fez requerimento ao Ministério Público do Rio pedindo a investigação de ações com uso de atiradores de elite; e apresentou um requerimento de informações às polícias Civil e Militar solicitando o detalhamento das operações e de protocolos para atuação de snipers.
Além disso, prepara uma denúncia à ONU e à OEA sobre a política de segurança de Witzel. “O teor é contra a política de abate e de extermínio do governo do Rio, que está aplicando a pena de morte no chão da favela e da periferia, sem respaldo jurídico e constitucional para isso”, diz.