Mais um dia de aula na coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Desta vez, César nos transporta até sua sala de aula, onde uma aluna apresenta um mistério.
“Nota: Esta é uma história de cinco anos atrás que hoje apareceu nas minhas memórias de Facebook. Mexi aqui e ali, mas o evento principal realmente ocorreu.
Vida de professor é um teste para os sentidos. Era para ter sido apenas uma atividade a mais, entre outras, mais ou menos importantes. Acontece que a atividade em questão falava de assuntos pessoais, como, por exemplo, família. Deu no que deu.
A aluna estava sentadinha, muito próxima a mim. Fez o dever, compenetrada, como se de fato a atividade fosse um dever moral.
Muitos alunos faziam a algazarra de costume – haverá um dia em que será possível se aferir o impacto da poluição sonora na vida emocional do professor. Deve-se medir a reação do professor à exposição por anos a fio dos seus tantos mil decibéis gerados em uma sala de aula com trinta e cinco alunos de nove a onze anos.
O que dizer se, depois do hipotético teste, alguém por a mão em concha no ouvido e arrematar: O quê? Só ouvi um zumbido. Senta, Leonel Cristiano. Diga aí.
Devaneei. Enfim, eu lia o trabalho já prestes a rabiscar minha assinatura quando me deparei com uma resposta insólita, pelo menos, para mim. Em um dos itens da categoria família, lia-se: Tio Mike, desaparecido
O que estranhei? A palavra “desaparecido”, em registro formal, usada de maneira apropriada. Não perguntei à menina de onde ela tirou a palavra. Quase ouvi os dedos no teclado de alguém que preenche um B.O. em uma delegacia.
Ainda tenho memória auditiva.
Passado o assombro inicial, passei ao estágio especulativo – sou dado a essas ondas. O que houve com Mike? Teria dado volta no tráfico? Sido assado em “microondas”? Saído para comprar cigarros? Mudado de sexo? Assassinado um inocente? Matado um desafeto? Escapado? Voltado para o Norte? Dado um tempo? Fugido com a namorada?
Um aluno, que por acaso ouviu a conversa, se aproximou da aluna e perguntou se Mike era polícia. Ele também entendeu o significado da palavra.
Do entreouvido retive o que pude. Tio Mike estava desaparecido desde novembro. Não investiguei mais para não abusar da franqueza da menina, uma vez que ela, aos olhos da família, talvez tivesse falado demais.
Depois, devo ter ido apartar uma briga ou coisa que o valha. E mais depois ainda, fui dar visto nos cadernos, porque, sem visto, não tem educação física. É o que combinamos com os russos.
Esqueci de dizer que a sobrinha do Mike gosta de ler. Pediu-me para ler um livro naquele dia mesmo, assim que terminou a atividade, ao que concordei de pronto. Então, sacou um livrinho da mochila e entrou em seu mundo.
Ora, reclamo muito da prefeitura, considero sofrível a gestão do prefeito malandreado – mas sofrível não quer dizer desaparecido, estou escamoteando. Sofrível não quer dizer nada, já deu para entender. Acho que a gestão das CRES deixa pouco a desejar. Acho minha direção bem-intencionada, e também sobrecarregada.
Por derradeiro, segue o desabafo: não faço nem de longe o trabalho que gostaria de fazer. Não sou otimista, já fui mais brasileiro. Mas fico feliz quando vejo que há uma Sala de Leitura onde uma criança possa ler. Pelo menos, se estou ficando surdo, ainda não fiquei cego.”
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.