“Tiraram dele o que ele era”

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Eduardo Lobo lembra período na prisão, processo administrativo, impacto na família e o legado de Luiz Carlos Cancellier de Olivo

Por Tatiane Correia, compartilhado de Jornal GGN




Eduardo Lobo, professor da UFSC. Foto: Reprodução de vídeo

PARTE DA SÉRIE ‘AS VÍTIMAS DA LAVA JATO’

Lawfare: uso da lei e de procedimentos legais pelos agentes de justiça para perseguir um inimigo e, assim, destruir sua reputação.

A ação da Polícia Federal na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com a operação Ouvidos Moucos não causou apenas a morte do reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, mas também comprometeu a saúde psicológica e a reputação profissional de todos os envolvidos no caso.

Eduardo Lobo, professor-assistente da UFSC, foi um dos detidos e chegou a passar 36 horas preso na chamada Penitenciária da Agronômica por conta dessa operação, mas ele explica que nada irá superar a violência do afastamento das salas de aulas.

“Houve muitos eventos, não só o da Polícia Federal – ele é o mínimo comparado com um ano de afastamento cautelar, sem poder entrar na universidade”, relembra Lobo, afirmando que esse afastamento era “uma antecipação de pena”.

“Qual a periculosidade que seis professores universitários têm que ficar afastados da universidade? Enquanto isso, a gente ouvia dos nossos alunos que éramos todos ladrões – ou seja, quem estava lá e acusou ou criou a fake News estava falando mal e a gente sem poder se defender”, diz, relembrando o chamado ‘massacre’ dentro da instituição de ensino.

Na visão de Lobo, o impacto ou o contato com os agentes federais não são capazes de resumir a experiencia em si, que é muito pior quando se rememoram as 36 horas passadas na Penitenciária Estadual da Agronômica.

“Eu fiz questão de escrever para registrar, para não esquecer – eu acho que é humano, né? A gente lembra das melhores experiências, com saudosismo, aquele prato que você comeu, aquela cidade maravilhosa que você conheceu (…) Eu te diria que a experiencia, a minha pior foi a restrição de liberdade de não poder ir e vir e permanecer na universidade. Isso foi uma violência mais simbólica, mais psicológica”.

A violência também foi vista de forma física, no ato de ficar preso em uma jaula e usar o chamado marcapasso, que nada mais são do que as algemas presas nos tornozelos. “A algema, a roupa laranja, que tem um cheiro característico – um cheiro de inseticida, de bactericida. Tem um cheiro característico, o presídio tem cheiro”.

Outra coisa lembrada até hoje é o som do ferrolho da porta de ferro, abrindo e fechando com frequência. “No início você pensa ‘pô, já vieram me tirar daqui, né?’ Depois da quarta, quinta vez, vieram trazer mais pão, vieram dar algum aviso, não vão me tirar daqui, né? É para bater na autoestima mesmo, para destruir mesmo o psicológico”.

Tratamento de bandido

As 36 horas passadas na detenção mais pareceram um mês, como relata o professor. “Foi uma noite, mas a gente sai dali com vontade de ajudar. Não é vida morar, viver ali no cárcere. Não é vida”, diz Lobo. “Tem algumas passagens que marcam muito, mas não de uma maneira positiva, a gente tenta sublimar”.

Ao chegarem na Penitenciária da Agronômica, os professores foram colocados em uma jaula, e passaram inclusive pelo exame anal, o chamado ‘teste do agachamento’. “É o protocolo deles – ou seja, nos botar no protocolo e o que se sabe hoje é que alguém ligou para lá e disse ‘trate que nem bandido’”.

Para exemplificar, Lobo explica que eles estavam perfilados antes de jantar, que eles comeram com uma colher comunitária.

“Nós dividimos água que nos deram, uma caneca plástica e dentro, um potinho de plástico. Eu me lembro que eu pensava assim ‘eu tenho que comer proteína, não vou comer arroz, vou comer proteína’. Eu comi salsicha, o que vinha. E aí alguém pergunta ‘quem é o Luiz?’”, diz o professor.

“Aí o Cancellier, o nome dele é Luiz, ele disse ‘sou eu’. ‘Ah, tu que é o reitor. Aqui ele só é o Luiz’”. E daí, ele é o Luiz e ele é só o Luiz também quando está na reitoria, sabe? Ele não precisava disso”, afirma o acadêmico.

Além disso, os professores ficaram presos na área de segurança máxima da penitenciária – “até onde eu sei, colocam pedófilo, o cara que esquartejou a mãe, colocam estuprador e aqueles caras que não estão ligados a facções criminosas, que não trabalham com tráfico (…) Vamos colocar ali não porque nós fomos como eles, mas nos colocaram para, digamos, nos proteger dos outros”.

“Então, esse tipo de passagem mostra um pouco (…) Ninguém precisava de nada disso para começar, nem se fosse culpado precisava de um tratamento desses, né? Sendo inocente… Poxa, eu nem sei se é pior ainda. Ninguém merece. Ninguém merece ser privado do devido processo legal”, ressalta Lobo.

“Tiraram dele o que ele era”

Aos poucos, os professores iam se acostumando com a ideia do afastamento. Exceto Cancellier. “(Ele) não conseguiu, não resistiu a essa violência toda – ele sentiu de outra forma. Eu aprendi que cada um sente de um jeito”, diz Lobo.

“Eu estava acostumado com aquilo de não poder sair de casa – eu podia sair de casa, mas tinha uma restrição de liberdade, eu não poderia entrar na minha universidade. Não podia falar com meus alunos, deixei orientando de mestrado na mão porque eu não podia orientá-los”.

Diante do caso, os advogados entraram em contato com cada um dos envolvidos no caso para saber como eles estavam por temor de um eventual ‘efeito cascata’ gerado por um evento tão traumático.

No caso de Eduardo Lobo, a preocupação dele era outra. “Eu disse ‘não, não se preocupe porque eu acabei de passar pelo quarto da minha filha, ela estava penteando o cabelo, cabelo fininho, ela tinha nove anos (…) Então, assim, eu não vou me matar, vamos brigar para provar a inocência”.

“Eu aprendi nesse um ano de afastamento que a gente é o que a gente faz, sabe? E isso também explica, é um componente a mais para o suicídio do Cancellier – tiraram dele o que ele era, o que ele fazia lá”, relembra o professor.

Falta de apoio

Para o acadêmico, a morte de Cancellier acabou por dar contornos políticos ao caso. Vale lembrar que, dentro da carteira do reitor, foi encontrado um bilhete que dizia “minha morte foi decretada quando fui banido da universidade”.

“O baque da morte do Cau foi muito grande, ele transformou o processo em um processo político, transcender o que seria institucional – o que foi pior ainda, porque antes a universidade já não sabia o que fazer para defender o seu reitor. Com a morte, a universidade ficou ‘sem pai nem mãe’”.

No caso de Lobo, ele teve pouquíssimo apoio institucional, e cita dois nomes em especial: o ex-reitor Ubaldo Cesar Balthazar, que saiu da UFSC para participar de uma reunião organizada pelos professores afastados na sede do escritório de um dos advogados”.

“Pergunta para o reitor: eu quero saber se a UFSC acredita na nossa inocência (…) Não houve manifestação alguma de desagravo ao que tinha acontecido, né? Então isso também pesou demais, é uma violência também”.

Outro nome citado foi o professor Alexandre Marino, que era pró-reitor de Graduação da universidade. “Ele (Marino) me convida para tomar um café no shopping onde o Cancellier morreu. Eu vou, ele me diz ‘Eduardo, eu estou reitor em exercício. Então, eu estou querendo saber se você está precisando de alguma coisa hoje”.

Como afirma Eduardo Lobo, muito se fala de acolhimento – e, para ele, faltou defesa da Universidade pela sociedade. “O reitor da UFMG, os alunos foram buscar ele na sede da Polícia Federal para tirar ele de lá, e aqui o pessoal torcia para que a gente tivesse roubado R$ 80 milhões. Torciam porque, afinal, a polícia era o herói né? O (Sergio) Moro era herói, todo mundo herói… Então teve muito isso também”.

A busca por justiça

Lobo e os outros professores voltaram à UFSC por conta de um habeas corpus – “quando nós voltamos, um ano depois, o Ubaldo diz assim: ‘aqui é a casa de vocês’”.

Na ocasião, o professor fez três pedidos: mudança de departamento (na época, Lobo estava na área de Administração, e foi transferido posteriormente para a Engenharia Civil), apoio psicológico na junta médica da UFSC e uma hora para fazer sua defesa junto ao conselho universitário.

Lobo ressalta que o pior nesse caso foi ter ficado um ano afastado da UFSC. “Enquanto essa onda punitivista, lavajatista, não passar, vai ser mais difícil a gente se defender, né?”

No processo administrativo, o professor lembra de uma passagem específica – “a CGU (Controladoria Geral da União) ‘não gostou’ do procedimento administrativo disciplinar que a Corregedoria da UFSC abriu contra nós. E o que Brasília fez: avocou os processos desconfiando da UFSC”.

Quando o recurso dos professores foi avaliado pela AGU (Advocacia Geral da União), que presta assessoria jurídica para o ministro responsável, Lobo diz que ‘foi a primeira vez que alguém da área do Direito dentro da CGU acolheu os argumentos e enfrentou – na verdade, arquivou e absolveu tudo, salvo uma nota fiscal de R$ 117 que renderia apenas uma advertência. E como advertência prescreve em seis meses, (então) estava prescrito e não deveria ir para o registro funcional”.

“Eu fui absolvido de todas as imputações no processo administrativo disciplinar movido ou tocado pela CGU de Brasília – e aí o parecer foi publicado em novembro de 2020”, diz o professor, naquela que foi a primeira grande absolvição obtida pelos acadêmicos. “Deu um outro gás, eu já estava em um outro departamento – mas o que a gente percebia, é que iam nos demitir. Precisavam demitir, precisava ter materialidade, precisavam achar um culpado, precisava justificar tudo aquilo, né? Só que não, né?”

Eduardo Lobo enfatiza que a decisão da CGU mostra que todas as decisões discutíveis, relacionadas a pagamentos eram possíveis, e só comprova que é uma questão administrativa – ou seja, ninguém pagava laranja ou enriqueceu de forma ilícita.

“Eu provei que todas as bolsas que eu recebi, eu trabalhei, fazia jus, eram lícitas e devidas. Então de novo: não precisava. Quando você me pergunta qual foi a violência, não teve uma maior – é todo o pacote, o conjunto da obra, sabe. E a CGU agredindo verbalmente as testemunhas, querendo nos condenar a qualquer custo, não aceitando os argumentos”.

“Chama e pergunta”

A delegada Erika Mialik Marena era a responsável pela Operação Ouvidos Moucos – e, segundo Lobo, ela tinha a intenção de realizar desdobramentos da operação, chegando inclusive a agir dentro do segundo maior projeto do Departamento de Administração da UFSC, que era um projeto contratado pelo Ministério da Saúde.

“Ela foi embora de Florianópolis, deixou o processo aberto, e o que acontece em 2021: o delegado que assumiu pega aquele processo aberto, e o que ele faz: chama as pessoas. Aí ele me perguntou se eu trabalhava naquele projeto, se tinha como provar (…) Ou seja, eu expliquei e ele ‘ok, estou satisfeito. Muito obrigado’”, relembra Eduardo.

Quando questionado pelo delegado se queria acrescentar algo, o professor disse ainda acreditar na instituição Polícia Federal, que as pessoas são sérias, e que acreditava no Estado Democrático de Direito. “Fiz um discurso para dizer ‘puxa vida, porque não fizeram igual a esse no outro processo? Chama e pergunta (…)’”

Impacto na família

Pode-se dizer que o impacto de uma ação desse tipo não fica restrita apenas à vítima, como também afeta sua família de forma indissociável mesmo com todas as tentativas de manter a família longe do caso.

Lobo afirma que passou pelo tratamento psicológico da UFSC e deu alta para a terapeuta em dezembro do ano passado. “Ela fez muito bem para a minha família também porque eu não ficava mais naquela neura, naquele looping, e a gente ia celebrando as pequenas vitórias que íamos tendo”.

“Minha filha tinha nove anos, ela fez 15 esse ano e ela começou a demonstrar um certo interesse – e me perguntou. Minha psicóloga tinha dito ‘não força, quando ela te perguntar, e se te perguntar, você responde de acordo com o que ela quiser saber, sem forçar”.

Já o filho mais velho, que abriu a porta e deu de cara com o policial federal armado em busca de seu pai, sentiu o caso com mais intensidade e não passou no vestibular daquele ano.

Nem mesmo a esposa de Lobo passou incólume. “A minha esposa entrou em depressão, ficou seis meses afastada e foi voltando aos trabalhos, mas foi muito difícil também (…) Você acredita que o delegado disse que eu gostava muito de dinheiro porque eu recebia do IFSC (Instituto Federal de Santa Catarina) e da UFSC”.

Contudo, a esposa de Lobo era professora do IFSC, e o que constava na conta era apenas a renda conjunta do casal. “Só que, para a Polícia Federal e para dizer que eu gosto muito de dinheiro (pegou) aquele rendimento para poder somar e dizer ‘não, esse cara que ganha R$ 30 mil, mais as bolsas, mais isso, mais aquilo, é um cara que gosta muito de dinheiro’”.

Custos

Lobo afirma que o processo administrativo conduzido pela UFSC tomou o relatório elaborado pela Polícia Federal como base. “Como você começa um processo administrativo a partir de um inquérito policial? Não, né? Tem que ser o contrário, você tem que olhar primeiro o administrativo para depois olhar (…) É a carroça na frente dos bois, é o primeiro prende depois vai atrás da informação”

O professor da UFSC diz que o caso ficou ainda mais sem sentido em termos criminais após a absolvição em Brasília. “A CGU deveria ter dito assim para o Ministério Público, para a Justiça Federal: ‘essa turma aqui, isso aqui é tudo administrativo. Vocês me desculpem, mas aquela nossa participação lá no início foi um erro, porque a gente não achou nada. Então pode absolver aí essa turma’”.

E no fim das contas, o custo de manter os professores e as aulas em andamento foi maior do que o da verba supostamente desviada.

“Vamos fazer a conta assim: seis doutores afastados, com um ano de salário pago direto e a gente impossibilitado de trabalhar. Mais um substituto para cada um dos que estavam afastados, e a Universidade paga esses salários. Só essa conta dá mais do que os achados do TCU, e foram todos explicados”.

Pelos cálculos de Lobo, os R$ 80 milhões citados como desvio baixaram para R$ 3,3 milhões – sendo que 9% (ou R$ 327 mil) pertenciam à gestão Cancellier, e a maioria pertence ao reitor anterior.

“Ainda não tô dizendo que houve crime em nenhum desses por percentuais. Tô dizendo que, espera aí: dê a César o que é de César. Prender o Cancellier por R$ 327 mil que disseram que eram R$ 80 milhões?”, questiona.

“Detalhando um pouco mais: a questão do TCU era de R$ 3,3 milhões. O que aconteceu: arquiva um processo, abre um processo na sequência contra os coordenadores dos projetos que ordenavam a despesa, em paralelo um processo contra o CAPES que autorizou o plano de trabalho – ou seja, era uma questão institucional. A UFSC executava o plano de trabalho que a CAPES aprovou”.

O que se sabe é que a UFSC justificou 90% dos R$ 3 milhões, e os 10% que faltavam não foram justificados pois a Polícia Federal não devolveu os documentos necessários para tal.

Legado

Atualmente, Eduardo Lobo é considerado um dos professores mais prestigiados do curso de Engenharia Civil da UFSC – “já fui paraninfo, patrono e nome de turma. Então, entre 50 professores você sempre ser um dos três melhores avaliados é algo muito legal”.

Contudo, o que Eduardo Lobo diz de forma categórica é o compromisso de sempre defender a memória de Luiz Carlos Cancellier de Olivo. “Quem tem que ser lembrado é o Cancellier, sabe? Sempre, não foi julgado, jamais julgado, e mais lembrado porque a grande vítima nisso foi ele”.

“Nós que estamos vivos – eu acho que essa é a grande diferença, né? A gente que tá vivo, a gente tem esse compromisso. Por exemplo: quando eu fui convidado para paraninfo da turma de engenharia para me fazer discurso, né? Eu fiz o discurso e fiquei pensando ‘putz. Como é que eu vou botar é uma festa dos alunos? Como é que eu vou fazer uma homenagem?’ Eu falei, só que não diretamente: eu disse que era uma honra estar no centro de eventos Luiz Carlos Cancellier de Olivo, com quem eu tive a honra de dividir esse lugar aqui algumas vezes”.

Em memória de Luiz Carlos Cancellier de Olivo

Leia a primeira parte da entrevista com Eduardo Lobo clicando aqui.

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