Toda a vez que estamos felizes eles tratam de inventar a tristeza

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Por Enio Squeff, jornalista, escritor e artista plástico

Você que inventou esse estado / E inventou de inventar / Toda a escuridão / Você que inventou o pecado / Esqueceu-se de inventar / 
O perdão (Chico Buarque, “Apesar de você”)




 

Há uma rara e infeliz coincidência entre o Brasil alegre, que emerge aqui e ali ao longo da nossa história, e a interferência dos militares dispostos a instaurar o que Chico Buarque de Holanda pespegou muito bem em seu samba no tempo da censura. De fato, no “Apesar de Você”, há a verdade dirigida evidentemente a quem de direito, que diz “Você que inventou a tristeza, ora tenha a fineza de desinventar”. Não será verdadeiro, certamente, dizer dos militares, que só eles inventam o que hoje nos acomete. As elites brasileiras são suas vozes, seus ouvidos e sua fala. Por isso mesmo, porém, a questão: que diabo deu no general Villa Boas de ameaçar o STF, caso Lula fosse absolvido? Seria a alegria?

 

Não há respostas, a não ser no que sabemos sobejamente: que em 64 vivíamos um dos melhores anos de nossas vidas, fato suficiente pra que os militares instaurassem a tristeza no país. Antes do golpe, o Brasil balançava o mundo na bossa nova, éramos campeões mundiais até no futebol e, mais importante: tínhamos intelectuais como César Lattes e Mário Schenberg, cientistas, Celso Furtado, economista, Darcy Ribeiro, antropólogo, Antônio Houaiss, linguista, literalmente um batalhão de gente inteligente de que, na universidade e fora dela, só nos orgulhava.

 

Bem, como era esperado, todos acabaram expulsos do Brasil. E das instituições. E imediatamente contratados pelas maiores entidades de ensino superior do mundo. As Forças Armadas Brasileiras, no pleno exercício dos poderes de seus canhões e torturadores fizeram questão de deixar claro que não lhe importava o êxito do Cinema Novo, os talentos de Millôr Fernandes, de Antonio Callado, de Chico Buarque, Gilberto Gil, de Caetano, de João Cabral de Mello Neto, João Gilberto entre muitos outros, a gente de teatro, como o Flávio Rangel, das artes plásticas – os inteligentes do país, os que, de um forma ou outra nos faziam felizes.

 

E, então, instauraram a tristeza.

 

Não vou insistir no quanto até bem pouco, o quanto nos alegrava vermos gente humilde em aeroportos, cruzeiros marítimos; ou sabermos que os negros, por fim, tinham acesso às universidades; e que, se estivéssemos no exterior, o quanto nos orgulhava ouvirmos de franceses, portugueses, espanhóis, italianos de que éramos uma esperança para parte do mundo.

 

Certa vez, ainda na ditadura, ouvi de um diplomata italiano uma reflexão ponderável. Levou-me a sua sala, onde havia um mapa mundi, apontou para a imagem dos Estados Unidos, desceu o dedo para o mapa do Brasil e me questionou se alguma vez os americanos permitiriam que o nosso país se constituísse numa grande nação. Era uma lógica meio canhestra. Mas, passados muitos anos, vejo que ele estava certo. E que, para que o Brasil conhecesse o seu lugar, bastava pensar nos militares. Eles, como representantes da grande nação do Norte, fariam o que lhes cabia nesse imenso latifúndio. Ao qual evidentemente não nos cabem nem ao menos sete palmos de profundidade.

 

Não imagino ou me iludo que o general Villas Boas e seus seguidores de farda, estejam muito preocupados com os brasileiros a roerem osso, a dormirem em barracas, a chorarem a morte de seus mais de 600 mil conterrâneos, a desaparecerem de fome. Os Temer, os Lehmann, os governadores a eles ligados, não se pejam de viveram a tripa forra, como se dizia nos antanhos. Agora, porém, e de novo com os milicos à frente, eles reinventaram a tristeza.

 

A coisa chega a tal ponto, que em nome de economia (economia?), o sujeito que ascendeu à presidência, um ex-militar (que aliás, está humilhando os generais a olhos vistos), tem a desfaçatez de negar que mulheres pobres tenham absorventes de graça. Nada do que é dado de graça agrada a essa gente. Já nem falo dos absorventes, falo do sol, dos rios, das paisagens, da noite estrelada, do ar que respiramos.

 

Um exemplo é o governador do Rio Grande do Sul, o tal que está surfando no fato legítimo de ser gay e que pode ser candidato a presidência pelo PSDB: ele conseguiu que o rio Guaíba volte a ser envenenado com agrotóxicos – lei que o ecologista José Lutzenberger havia logrado proibir através do Legislativo gaúcho. Um patrimônio que em outras plagas estaria sendo cultivado por uma cidade inteira, irá se transformar num Tietê.

 

A propósito, na cidade por onde corre o próprio e seus rios poluídos, até o sol vem sendo negado a seus moradores. As incorporadoras estão construindo edifícios nos poucos oásis das vilas de alguns de seus bairros, como Pinheiros, Perdizes, ou mesmo da periferia, com edifícios mastodôndicos, sem qualquer controle da prefeitura. Que só pensa em prestar-lhes todos os serviços que eles quiserem. Inclusive de tapar impunemente o sol.

 

Havia um filósofo, na antiga Grécia, chamado Diógenes, que morava numa barrica. Um dia foi visitado por Alexandre, o Grande. Conta-se que pensando poder contribuir com o homem sábio, perguntou-lhe se ele, Diógenes, queria o que quisesse que ele, Alexandre, lhe daria. Ao que Diógenes lhe respondeu que o que queria, nem o homem mais poderoso poderia lhe tirar. Quando o imperador perguntou-lhe, curioso, o que era, Diógenes respondeu-lhe que se afastasse da barrica, onde vivia: estava lhe tirando o seu sol.

No Brasil da tristeza das casernas, nem o sol é um direito de seus cidadãos.

 

 

Capa do post: recorte da obra “O Saci e a Ninfa”, 2017, Enio Squeff
100×120 cm, acrílica e monotipia sobre tela e madeira

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Fotografia ©️javam-fa

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