Lançando novo livro, a pedagoga avisa que é ‘uma sociedade diferente’ e quem for ou vai amar ou vai odiar
Por Letícia Fontoura, compartilhado de Brasil de Fato
Com a autoridade de quatro décadas de vivências com o povo cubano, a doutora em educação Maria do Carmo Luiz Caldas Leite sugere que todo mundo deveria viajar a Cuba para “entender o país um pouco melhor”. Segundo ela, ninguém sai indiferente. “Ou ama ou odeia”, resume.
Ela é autora de Cuba Insurgente: Identidade e Educação, onde trata da história, da pedagogia e do modo cubano de ser. Explica porque a educação é “a pedra angular da revolução”, relacionando o conhecimento da população das raízes do país com a consciência e o orgulho dos habitantes da ilha, o que chama de “cubania”. Ela esteve em Porto Alegre em novembro, a convite da Associação José Martí, para lançar o seu livro no Clube de Cultura.
O Brasil de Fato RS conversou com com Maria do Carmo sobre sua experiência no país de Fidel Castro, onde se mesclaram o marxismo e as ideias de José Martí, poeta, político e herói nacional forjado no enfrentamento da exploração colonial.
Brasil de Fato RS: Qual é a definição de insurgência pedagógica?
Maria Leite: A história da educação em Cuba é uma somatória de insurgências. Está diretamente vinculada às lutas contra o colonialismo e o neocolonialismo. Então, o grande diferencial da educação cubana, é que os primeiros pedagogos, que lançaram as bases da educação cubana, morreram nos campos de batalha lutando contra o colonialismo espanhol, inclusive o José Martí, que é o maior expoente da pedagogia cubana.
A pedagogia insurgente nasceu disso no século 19, junto com as lutas independentistas, os primeiros professores, que começaram a diferenciar a pedagogia num processo autóctone, das raízes cubanas. Isto criou um grande diferencial porque o professor cubano até hoje se vê como um soldado, um militante na defesa da soberania do país.
Nessas lutas (da independência) morreram 400 mil cubanos, um terço da população da ilha (na época). Foi um processo muito sofrido. A Espanha entregou todas as colônias e dizia que, em Cuba, seria até o último homem e até a última peseta, que era o dinheiro deles. Iriam gastar tudo mas iriam preservar Cuba. Era como uma espécie de chave do mundo pela localização entre as Américas.
Quando os espanhóis saíram de Cuba, no mesmo dia em que foi arriada a bandeira espanhola do palácio dos capitães gerais, subiu a dos Estados Unidos. E aí o que os norte-americanos fizeram? Metabolizaram a sociedade cubana por dentro, inclusive a educação, com os valores da sociedade norte-americana. Martí morrera no campo de batalha e era o herói nacional. Mas as ideias dele de independência, soberania e valorização da cultura própria, tudo submergia, porque estavam ali os neocolonizadores.
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Então, foi na palavra dos professores, na transmissão oral, que esse legado pedagógico do século 19 se confirmou. Na geração de 1920/1930, dentro das universidades começou um movimento forte de recuperação da soberania do país. A independência de Cuba custou 90 anos de luta, 30 contra o colonialismo espanhol, e 60 contra o neocolonialismo. Dentro das universidades houve revoluções inconclusas, mas que mexeram com o imaginário. E, depois, deram origem à geração da qual fez parte Fidel Castro que invadiu o Quartel Moncada (*). A pedagogia se mescla com essa história de revoluções em Cuba.
Que tem uma educação diferenciada.
É diferenciada porque é voltada para as raízes nacionais. No Brasil, a educação é eminentemente forjada por ideias. Por exemplo, aqui o maior movimento educativo do século 20 foi o dos pioneiros da educação e o expoente maior era Anísio Teixeira, discípulo de John Dewey, um norte-americano. A certidão de nascimento, pode-se dizer assim, da escola no Brasil foi o manifesto dos pioneiros em 1932 e veio inspirado pela pedagogia dos Estados Unidos. Não temos aqui uma tradição como a de Cuba.
Este tipo de educação, se fosse levado para o mundo, seria revolucionário?
Como várias vezes falou Fidel Castro, experiência revolucionária não se exporta. Cada país está numa situação. O processo da própria revolução cubana nunca mais vai se reproduzir no mundo. Quando começou a revolução, os norte-americanos diziam que era um bando de loucos, que eles mesmos se retirariam do poder. Menosprezaram o potencial revolucionário do grupo do Fidel Castro. Quando tentaram intervir naquilo, era tarde demais.
A revolução já se instalara, tinha triunfado, tinha feito a reforma agrária e a urbana. Então, os americanos ficaram em alerta. Na década de 1960, interviram no Brasil, no Chile, no Uruguai, no Paraguai. Ficaram com medo do que ocorrera em Cuba. Reproduzir o que ocorreu em Cuba é muito difícil. Quando a Danusa Leão disse na Folha de S. Paulo que não sabia para havia tanta pesquisa em educação na USP, na Unicamp. (Para ela), não era preciso pesquisar nada. Bastava ir à França, ver o modelo da educação francesa e trazer para as nossas escolas.
Escrevi uma carta para a Folha e eles publicaram na Coluna do Leitor. Falei para ela: ´Querida, tem que trazer junto os alunos, os pais dos alunos, os empregos dos pais dos alunos, as casas, os teatros, os centros de cultura. Não adianta trazer só a educação. Tem que trazer tudo o que tem na França`…
A definição de modo cubano de ser e existir?
Em Cuba existe uma coisa chamada ´cubania`, que é uma maneira de ser dos cubanos. Você nunca vai encontrar um cubano com complexo de inferioridade. A primeira vez que fui a Cuba – naquela época ainda tinha maleteiro que carregava mala – ele falou: ´Quer que eu ligue a televisão?` Ligou, estava a Gal Costa na TV, ele sentou na cama do quarto e disse ´Adoro a Gal Costa. Você gosta?` E começou uma conversa comigo.
Você vai nos Estados Unidos e se você cumprimentar uma arrumadeira no hotel, ela fica numa situação de inviabilidade. Se você passar e olhar, ela fica ali como se fosse um móvel. Se você falar ´Bom dia`, eles falam ´Bom dia`, mas assim, com aquela humildade. Em Cuba, você não vai achar um cubano com marcas de servilismo, uma pessoa que foi maltratada.
Lançamento do livro foi no Clube de Cultura / Divulgação
Chegou lá, é doutor, não importa: eles se metem a falar, todo mundo tem opinião, defendem para falar bem do governo ou mal. É a forma de ser dos cubanos. Eles se empoderaram pelo processo de independência. Acham que são uma gente que não tem medo de ninguém. É ´Nosotros` e o resto da humanidade. Falam ´Somos os melhores médicos, os melhores amantes, os melhores esportistas`.
Eles se vêem assim. Aqui no Brasil teve extermínio de índios, teve escravo, mas você não escuta as pessoas falarem como eles falam lá, com um sentimento de defesa. Eles falam ´Este país foi construído com sangue, o suor dos negros`. Tem uma história viva. Faz parte disso que chamam ´cubania`.
A educação cubana deveria servir como exemplo ao mundo?
Quando Fidel Castro se deu conta que esses valores da ´cubania`, da nacionalidade, estavam sendo solapados, o que ele fez? Colocou a história como disciplina priorizada nas escolas. Começou com uma reforma chamada ´Batalha de Ideias` em 1999. História, espanhol e matemática têm o mesmo número de aulas. A pessoa tem que conhecer o passado. O que custou, o sangue que foi derramado.
É uma coisa que se poderia fazer aqui no Brasil. Mas nossa educação vai na contramão disso. Tem que resgatar muito da história do Brasil. Algo que se poderia aprender com os cubanos é isso. Fiz uma pesquisa lá, participando de uma pesquisa que foi feita na Argentina, na França, em Portugal, no Brasil e entrevistei 70 professores. Perguntava-se: o que sua família achou quando você resolveu ser professor?
Um professor em Cuba é uma figura de respeito. Aqui, quando era professora nas séries iniciais, eu tinha dificuldade para abrir um crediário – antigamente, preenchia-se um papel, abria um crediário e todo o mês pagava o carnê. Então, quando eu dizia que era professora, ninguém queria dar crédito. Em Cuba, as famílias têm orgulho de dizer (que o filho era professor).
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No Brasil, famílias de maior poder aquisitivo não querem que o filho vá ser professor. A profissão foi proletarizada de maneira pejorativa e violenta. Mas é difícil. É toda uma intencionalidade política, que não existe no Brasil e existe em Cuba, de valorização da educação. Aqui, o mercado domina a educação.
A senhora é formada em Física, não?
Tomei essa decisão de ser professora de Física na adolescência. Sofria tanto quando dava aula de Física no curso de Engenharia… Ensinar Física dá trabalho. Tinha que encher aquele quadro, apagar tudo, resolver problema, com limite, derivado, integral. Outros professores de outras disciplinas davam uma folhinha para o aluno, vamos discutir o texto. Eu tinha inveja. Dizia ´Porque fui querer ser professora de Física?
Tinha professora de PHC, que é Problemas do Homem Contemporâneo, lá na universidade em que eu dava aula. Discutia-se coisas que todo mundo tinha opinião a respeito, tipo aborto, pena de morte, sexo na adolescência. Aborto, ninguém sabe de estudos, o que é, as consequências, mas todo mundo tem opinião.
Em Cuba, o aborto foi legalizado em 1965 como uma exigência da Federação de Mulheres Cubanas. Passados esses anos todos, agora tem estudos que mostram que 80% das mulheres de Cuba que se tratam em clínicas por infertilidade querem ser mães e não podem devido aos abortos na adolescência. Não defendo o aborto, mas defendo a legalização.
A legalização aqui no Brasil também reduziria o problema das pessoas irem em clínicas clandestinas, que não têm o menor suporte…
Morre muita mulher. É uma questão de saúde pública. Defendo a legalização junto com uma educação sexual muito forte nas escolas, explicando que aborto não é método anticonceptivo.
No livro Cuba Insurgente, Antônio Luiz Caldas Junior afirma que “toda a humanidade deveria ir um dia a Cuba”. Você concorda com esse pensamento?
Todo mundo deveria ir por vários motivos. Primeiro, porque é uma sociedade diferente aqui da nossa. Onde a pessoa vai viver uma festa de 1º de Maio como a de Cuba? Segundo, é a beleza natural. É uma natureza exuberante. Tem a cultura. Tem Havana Velha. Tem muita coisa precisando de restauração, mas está em pé lá.
Porto Alegre ainda tem muito prédio bonito. Mas tem um bonito e tem cinco feios do lado. Fui em Manaus agora e fiquei apavorada. Não tem nada. É uma destruição total, acabada. Santos é tão antiga quanto Havana e destruíram todo o patrimônio. Em Cuba, tem muita coisa deteriorada, mas não deixam demolir porque estão esperando a oportunidade de restaurar. Há uma valorização muito grande da parte histórica.
Deveria não só ir a Cuba, mas participar de uma brigada de solidariedade. A brigada é uma formação cultural. A pessoa não vai fazer turismo e sim vai para o programa de formação político-ideológica. Vai entender o país um pouco melhor. Você vai imaginando que vai gostar, então vai e vai gostar mesmo. Quem vai lá em Cuba e diz ´Vou lá ver o que é aquilo`, vai e odeia. Só vê a parte ruim. Volta falando que é uma miséria. Ninguém sai indiferente. Ou ama ou odeia.
E sobre o lançamento do livro?
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Lancei o livro na Associação José Martí em Santos e numa livraria em São Paulo. São públicos diferentes. Fiz um lançamento em Havana, em agosto, que foi muito bom também. Lá foi diferente porque em Cuba os livros são muito baratos. São subsidiados. Com 10 dólares você enche uma mala de livros. Como a editora não ia querer mandar o livro para lá – com um dólar você compra dois livros – levei uns comigo, fiz o lançamento e sorteei os livros. Nossa! Foi uma alegria dos que foram sorteados.
* O assalto ao Quartel Moncada ocorreu em 1953 e fracassou. Fidel Castro foi preso e, dois anos depois, ao ser libertado, seguiu para o México, de onde retornaria para tomar o poder em 1959.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Ayrton Centeno