Trabalho infantil, não! Mas o que Lula e Florestan diriam? – Por Mouzar Benedito

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É preciso saber discriminar o que é exploração da criança e o que não é, entender as necessidades reais das crianças e suas famílias

Por Mouzar Benedito, compartilhado de Fórum




na foto: Lula e Florestan Fernandes.Créditos: Arquivo Fundação Perseu Abramo

Estive me lembrando um dia destes de três histórias de crianças desamparadas. Quando tinha 17 anos de idade e trabalhava num supermercado, um morador da nossa república era funcionário do Hospital das Clínicas e um dia apareceu na nossa moradia com um menino de uns onze ou doze anos de idade, com uma enorme cicatriz no peito.

Explicou que o menino era do Norte de Minas Gerais, foi trazido pra cá para uma cirurgia que foi feita, sarou e teve alta, mas o pai não aparecia para pegá-lo de volta. Passou um tempo e um policial da Força Pública (depois renomeada como Polícia Militar) que fazia plantão no HC disse que levaria o menino pra casa e cuidaria dele até o pai vir à sua procura. Saindo do hospital, o policial disse ao menino que se virasse, e o abandonou ali. Imagine um garoto vindo da roça ou de uma cidade minúscula ali, num tempo em que eram raras as crianças que moravam nas ruas. Sorte que esse meu colega e amigo que trabalhava no HC viu o menino parado no meio da calçada, praticamente catatônico, e foi falar com ele. O menino contou, meu amigo ficou com pena dele e o levou para a república. Ficaria morando lá até não sabíamos quando.

Dos moradores da república, quatro trabalhávamos num supermercado. Deixar o menino sem fazer nada em casa seria ruim para ele. Levamos o moleque pro supermercado e fomos falar com o diretor. Explicamos a situação e pedimos que desse a ele o emprego de empacotador, que era normal na época. Foi aceito. Menos de uma semana depois uma cliente rica, moradora dos Jardins, veio falar com a gente. Tinha se encantado com a bondade do garoto e queria levá-lo para morar com a sua família. Seria adotado e tratado bem, colocado numa boa escola e não precisaria mais trabalhar. Viva! Resultado melhor do que esperávamos.

Menos de um mês depois, apareceu um menino com aparência de mestiço de negros e indígenas em frente à república. Parecia perdido. Procuramos saber a história dele e soubemos que era de Cuiabá. Uma irmã de 17 anos tinha vindo um ano antes para São Paulo, e mandava dinheiro pra família, dizendo que tinha um bom emprego aqui. Os pais, empolgados, mandaram o menino para morar com ela. Mas na verdade a moça tinha se prostituído aqui, e o menino não podia ficar em casa enquanto ela recebia clientes. Por isso estava ali, perdido. Pensamos: melhor ficar com a gente do que com a irmã. Decidimos que moraria ali. E no dia seguinte o levamos para o supermercado também. E repetiu-se a história. Esperto, inteligente, em menos de uma semana uma mulher rica quis levá-lo para casa, dar-lhe educação etc. Mais um bom resultado. A irmã soube e não se importou.

Outra história de criança é diferente destas. Soube por uma matéria em jornal. Uma diarista, moradora numa favela, se não me encano de Osasco. Tinha um filho pequeno e o criava sozinha, pois como acontece muito, depois de grávida foi abandonada pelo companheiro. Conseguiu vaga numa creche e o garoto passava o dia lá, enquanto ela trabalhava, geralmente no bairro de Pinheiros.

Um dia recebeu um aviso da Prefeitura: seu filho passaria a ficar na creche apenas meio dia, de manhã até almoçar. Ela tinha que buscar o menino logo depois do almoço. Desesperada, entrou na justiça explicando que não tinha como fazer isso. Trabalhava em casas distantes até o final da tarde. E mesmo que tivesse condições, o que faria com o menino? Além da impossibilidade de interromper o trabalho e gastar quase duas horas para pegar o menino e voltar, os patrões não aceitariam que ela o levasse para suas casas. E deixar no barraco da favela seria complicado, além do tempo gasto para isso, ele teria que ficar trancado no barraco.

O caso foi parar nas mãos de um juiz que, provavelmente bem- intencionado, mas sem noção da vida dos pobres, determinou que a prefeitura estava certa: toda criança tinha o direito a um período de convívio com a família, não devia ficar o dia inteiro na creche. Que família? Não sei o que aconteceu com o menino e a mãe.

Feito esse longo preâmbulo, defendo sim que as crianças não devem trabalhar, mas elas têm direito também a moradia, alimentação, educação, cultura, lazer… coisas que também lhe dariam a possibilidade de um bom futuro, enfim! O Estado garante isso? Lembro-me de quando morei em Campinas e soube do que acontecia num bairro pobre. Muitas crianças ficavam na escola meio período e ficar em casa à toa, sem dinheiro pra nada, sem atividade nenhuma (lazer, cultura, educação, esportes…) iam para bares onde ficavam vendo adultos jogando mini-snooker. Alguns frequentadores desses bares eram traficantes e se aproveitavam dessa situação. Ofereciam um trocado para comprar doces ou o que fosse em troca da entrega de um pacotinho a alguém na cidade. Pronto! Estava aí o início de uma “carreira”. Virava hábito fazer esse tipo de entrega e com o tempo o menino ia se comprometendo com o sujeito, virava um membro da “turma”.

O que quero dizer, repito, é que todas as crianças tenham direito a uma vida digna, sem precisar trabalhar. Mas têm que ter seus direitos garantidos e não simplesmente serem jogadas na rua.

Há muito tempo penso isso. Em 2012, quando a Boitempo criou o seu blog e me chamou para ser colunista, fiz meu primeiro texto sobre isso. Reproduzo a seguir, integralmente.

Florestan, Lula e o trabalho infantil

Nada melhor do que inaugurar minha participação no blogue de uma editora de esquerda, que publica livros de sociologia, do que “falar” sobre Florestan Fernandes.

Mas não é sobre algum texto dele ou sua genialidade e coerência como sociólogo.

É que lendo sobre ele, pensei: “Será que Florestan teria sido o homem e o sociólogo que foi, se na sua infância já existisse o Estatuto da Criança e do Adolescente?”.

Ah, se um promotor de hoje pega uma mãe que deixa o filho começar a trabalhar aos seis anos e abandona a escola aos oito!

Não pensem que sou contra esse Estatuto, que seja a favor da exploração do trabalho infantil. Ao contrário, gostaria que ele fosse aplicado radicalmente contra os adultos que os exploram, seja em carvoarias e trabalhos degradantes ou nas ruas de São Paulo, colocando-os para pedir dinheiro ou vender qualquer coisa nos semáforos e nos bares, neste caso até tarde da noite.

E gostaria que funcionasse menos no caso de moleques metidos a malandros que ameaçam denunciar com base no Estatuto os pais que querem que mudem de comportamento.

Voltando ao Florestan, ele afirmou em 1977: “Iniciei minha aprendizagem aos seis anos, quando precisei ganhar a vida como se fosse um adulto”. E mais: “Eu nunca teria sido o sociólogo em que me converti sem o meu passado e sem a socialização pré e extraescolar que recebi das duras lições de vida”.

Nascido em 1920 (morreu em 1995), em São Paulo, filho natural de uma empregada doméstica, aos seis anos fazia biscates e foi engraxate. Parou mesmo de estudar aos oito anos, para aumentar a receita da casa, pois sua mãe, então trabalhando como lavadeira e morando em cortiços e pensões, ganhava muito pouco. Ele só voltou ao ensino regular aos dezessete, para fazer o curso de madureza. Sentiu na pele as injustiças sociais.

Lia muito e, trabalhando como garçom, fez vestibular e entrou no curso de sociologia.

Imaginemos que, em vez de trabalhar, fosse a uma escola pública e ficasse o resto do dia à toa, num ambiente problemático, sem lazer e sem atividades culturais. Qual seria o seu futuro? Impossível adivinhar. Poderia até ter se tornado a pessoa admirável que foi, mas parece mais provável que não.

Lembrei-me também do ex-presidente Lula, que contava sempre da vida heroica de sua mãe, com um monte de filhos. Ele mesmo, criança, vendia amendoim para ajudar a sustentar a família. E chegou a afirmar que ele, irmãos e irmãs cresceram dignamente, ninguém virou marginal, graças à decência e capacidade da mãe para fazer os filhos trabalhar desde cedo.

Então, é preciso saber discriminar o que é exploração da criança e o que não é, entender as necessidades reais das crianças e suas famílias, o que nem sempre os encarregados de fazer cumprir as leis sabem.

Mais uma lembrança: Ricardo Kotscho conta, em um dos seus bons livros, que quando começou a trabalhar como repórter foi encarregado de apurar uma denúncia de que um homem que tinha uma olaria na periferia de São Paulo punha no trabalho dois filhos ainda crianças.

Ele foi lá, era verdade. Mas o homem mostrou a ele que não tinha como manter a olaria funcionando sem ajuda dos filhos, pois não tinha renda para contratar um ajudante. Provou, mostrando o boletim escolar, que os meninos frequentavam a escola regularmente e tinham tempo para estudar. Tinham boas notas.

De volta ao jornal, Kotscho procurou o editor, e explicou que se a matéria fosse publicada podia ir algum fiscal do trabalho, fechar a olaria do sujeito e acabar com seu meio de vida. O editor disse que isso não era problema dele (Kotscho), nem do jornal. A obrigação dele era publicar a matéria. Publicou. Algumas semanas depois, voltou à olaria. Estava fechada. Os vizinhos disseram que uns fiscais foram lá e fecharam. Sem condições de sobreviver ali, a família se mudou para uma favela de São Paulo. Os filhos não trabalhavam mais.

Será que foram mais felizes e se tornaram cidadãos melhores do que teriam sido trabalhando com o pai?

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.

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