Ousem parar as máquinas e pronto. Nenhum ‘traficante’ desce. O café – servido à mesa às 9h por alguém que levantou às 5h, fez comida, arrumou casa e deixou filhos na creche, enfrentando o aperto da van ou do busão – não estará quente. Assim como o pão fermentado com variedade de trigos – comprado em uma das esquinas mais chiques e caras da zona sul, com queijos rebuscados que valem uma nota – não estará no forno. O ‘traficante’ que faz esse trabalho e gasta energia sovando a massa antes mesmo que você durma…. bem, ele não o fez dessa vez.
Por Edu Carvalho, compartilhado de Projeto Colabora
O jornal não estará posto na porta, prestes a ser lido. A notícia-manchete é que o ‘traficante’, que o entrega na sua casa ou apartamento para que você possa ser informado, bem, esse também não veio. E ó, não foi só ele não, já que o ‘traficante’ que pilota o carro, rodando pela cidade, a levar quem quer que seja ao trabalho, lazer e o que mais houver, não chegou. Assim como a ‘traficante’, isso mesmo, aquela que cuida do filho como se fosse ‘da família’… putz, essa também não veio.
O pipoqueiro da escola do filho/a, o açougueiro, a atendente, o guarda da rua e minha nossa, o porteiro, esse mesmo que você diz ter “carinho” e é o seu “faz-tudo”, ainda que você nem trate bem. Todos eles, ‘traficantes’. Não vieram. E a manicure do salão, o garçom, o cara que vende bala – mas essa, de comer – também não foram vistos. O manobrista, o rapaz que instala internet, TV, luz, gás, que troca o cabo, que serve, que lava, passa, engoma, que embala… Ninguém tá aí.
Todos esses ‘traficantes’ cruzaram os braços; e veja só você o motivo: moram na favela. Olha que loucura. E todos eles passam horas sendo mola de potência e produção do que sustenta a cidade, o estado e o país.
Esses mesmos e do mesmo lugar onde você, agora, diz que só vivem e existem ‘traficantes’. Ligados a facções, em sua totalidade. A partir de uma cruzada político-eleitoral de um candidato que usurpa e violenta, em todos os momentos, quem vem desses territórios. Não entendeu? Isso mesmo: preconceito, ódio, nojo. Racismo, sabe? Para justificar o não voto em um outro candidato, por conta de uma ida sua à favela, usando um boné que representa a sigla desse local. Um sintoma nítido da doentia sociedade em que estamos não só vivendo e nos tornando. A morte daquilo que representaria ser uma nação, inflamada por narrativas embasadas por mentiras. Porque, no fim, é isso.
A construção é feita para pensar. Você acha mesmo que na favela “só” tem bandido? Acha mesmo que há conivência de quem mora? Deveriam ser todos presos? Imagina só se, num cenário hipotético, o descrito acima fosse realizado. Ou pior: já é, justamente quando a Polícia, na figura do Estado, entra nesse lugar com seus caveirões voadores, seus blindados, mirando o que estiver na frente, criminalizando as vidas que resistem e insistem, apesar da falta de acesso a direitos garantidos por leis.
Se você realmente acredita ou acha que essas pessoas são, de fato, ‘traficantes’, experimente passar um dia sem um desses serviços. Abdique de seus privilégios e veja o quanto são primordiais e importantes os esforços catalisados por uma massa honesta, digna e batalhadora. E que não, não está ligada a nenhuma facção, que tem orgulho de onde mora, que empunha na camisa ou na cabeça o prazer que é ser favelado (a).
E que, apesar de tudo, espera e só quer uma coisa: respeito. Para continuar a ser e produzir ainda mais potência, como diz Eliana Sousa, diretora da ONG Redes da Maré. Ixi, pera. Uma outra ‘traficante’. E, como ela, há ‘traficantes’ de saber, conhecimento e pluralidade que não acaba mais.
E assim, uma saraivada de gente que é ‘traficante’ (até eu).
O resto, como bem diz outro ‘traficante’, o poeta Sérgio Vaz, ‘é feitiço racista’.