René Ruschel, jornalista, para o Bem Blogado
O matemático Paulo Tadeu de Carvalho ainda se recorda daquele começo de noite, em janeiro de 2013, quando seu filho Raphael, 32 anos, embarcou no aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, rumo a Porto Alegre. O que pai e filho não imaginavam é que seria sua última viagem, a última vez que se viam. Horas depois uma tragédia na gaúcha Santa Maria, RS, mudaria para sempre a história de centenas de famílias e de uma cidade que ainda chora seus mortos: o incêndio da Boate Kiss, na madrugada de 27 de janeiro. Raphael foi uma das vítimas. Trata-se do terceiro maior desastre em casas noturnas de todo o planeta.
As labaredas de fogo, o terror, as lágrimas e gritos de dor, as centenas de corpos queimados estendidos nas calçadas são cenas vivas na lembrança da população.
Ninguém esquece aquela fatídica madrugada quando 242 jovens morreram e 680 ficaram feridos. “Para quem não vive em Santa Maria foi apenas um fato. Para nós é uma imensa ferida que não cicatriza nunca”, resume um motorista de aplicativo do município gaúcho, com 296 mil habitantes.
São dezenas de histórias que marcaram a tragédia. Uma delas conta sobre o bombeiro que, enquanto carregava o corpo de uma vítima, percebeu que o celular tocava no bolso. Era a 101ª ligação da mãe em busca de notícias. Ele simplesmente não teve coragem de atender para dizer que carregava a filha morta em seus braços.
Passados dez anos, os culpados ainda não foram punidos. Uma batalha jurídica se arrasta nos tribunais do Rio Grande do Sul e Brasília. O que parecia ser uma vitória das famílias se transformou em frustração.
Em dezembro de 2021, após quase nove anos, finalmente quatro réus foram levados a júri popular em Porto Alegre. Os proprietários da casa, Elissandro Callegaro Spohr, o Kiko, e Mauro Londero Hoffmann, e os músicos da banda que provocou a tragédia, Marcelo de Jesus Santos e Luciano Bonilha Leão.
Foram dez dias de embates entre o Ministério Público, advogados de defesa e acusação. Ao final, os réus foram condenados com penas que variavam entre 18 e 22 anos de prisão. Após oito meses, uma decisão da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça gaúcho anulou o júri por 2 votos a 1. O TJ acolheu as argumentações da defesa que contestaram sob o argumento de “falhas no procedimento formal” do julgamento, mas que, no entender do MP, nada interferia nos fatos, provas, testemunhas e documentos.
Dentre as justificavas contava que o sorteio dos jurados teria sido feito em prazo menor daquele que determina o Código de Processo Penal.
“Meu sentimento é de desolação, pois empenhei minhas melhores energias para que o julgamento se realizasse adequadamente”, afirma o juiz que presidiu o júri, Orlando Faccini Neto.
Para ele, uma década é tempo mais do que suficiente para que se conclua um caso criminal. “Precisamos refletir sobre mudanças legais e operacionais que contribuam para que os processos não se eternizem. A ausência de definição agrava a dor das vítimas”.
Mas é justamente essa dor que fortalece e mobiliza as famílias na luta por justiça. Agora elas se unem para escancarar a tragédia e apontar os possíveis erros jurídicos em Brasília, à casa do poder.
A partir desta quarta-feira, 12, a AVTSM – Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria irá montar vigília às portas do Congresso Nacional e do Superior Tribunal de Justiça a fim de pedir pressa no julgamento do recurso que corre no STJ contra a anulação do júri.
No Salão Verde do Congresso será instalada uma exposição de fotos para mostrar a catástrofe. O grupo pretende ainda discutir a possibilidade de organizar um seminário e apresentar a cronologia desta tragédia anunciada, assim como a sequencia de apelos que há uma década se arrasta pelos corredores de tribunais sem que ninguém seja punido.
“A vigília em Brasília é uma ação que oportuniza a luta contra a morosidade do poder judiciário”, diz o psicólogo Gabriel Rovadoschi Barros, presidente da AVTSM.
Para ele, essa ação permite que os familiares possam organizar uma agenda na capital da República com diferentes objetivos “desde pautar o STJ e o STF a necessidade de agilizar o julgamento do recurso contra a anulação do júri como chamar atenção à petição que corre na Corte Interamericana dos Direitos Humanos” com sede em San José, na Costa Rica. “Nossa luta é reverter à vergonhosa sentença do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul para reestabelecer a soberania dos vereditos e permitir que possamos dar novos passos nessa luta que não se encerra nesse julgamento”.
Reconhece que embora nada possa devolver às centenas de vidas ceifadas “o que queremos é que a Justiça não se omita e os culpados sejam punidos para que isso nunca mais aconteça”.
Paulo, pai de Raphael, uma das vítimas da tragédia: luta por justiça
Gabriel Rovadoschi Barros , presidente AVTSM – Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria