Por Nirton Venancio, Cineasta, roteirista, poeta, professor de literatura e cinema, revisor de texto
No começo dos anos 1920, a pequena Ella Jane, de três anos, vivia em um lar conturbado, em Newport News, Virginia. O pai sumiu com a amante e deixou a filha chorando com a mãe, que se mudou para Nova York atrás de trabalho. Na grande cidade a menina ganhou um padrasto, um imigrante português que se apaixonou pela mãe. Logo ganhou também uma irmã. Quando tudo parecia se configurar uma constelação familiar, o novo pai se revelou um cretino, humilhando e batendo na esposa.Aos 15 anos Jane perdeu a mãe, morta por um infarto.
O que já estava ruim, piorou: desempenho baixo das meninas na escola, preconceito por serem negras e agressões em casa. Ainda menor de idade, Ella Jane foi estuprada pelo padrasto. Pegou a irmã, fugiu para a casa de uma tia e denunciou o crime. Com o pai preso, as meninas ficaram sob os cuidados da tia que as tratava como empregadas.
Por conta das brigas constantes, Ella foi colocada num colégio interno, de onde fugiu e se tornou moradora de rua.Numa tarde quando pedia esmola na porta de um bar, Ella Jane conseguiu um emprego de vigia. Na verdade, o local era bordel e cassino, e seu trabalho era de informante: as atividades ilegais eram controladas pela máfia nova-iorquina, e a garota ficava de olho quando a polícia se aproximava. Não durou muito e uma batida fechou o estabelecimento, Ella foi descoberta como menor de idade e encaminhada para um reformatório, de onde fugiu e voltou a viver nas ruas.
Para ganhar uns trocados, cantava e sapateava nas calçadas. Alguns restaurantes permitiam que se apresentasse em frente, o que atraía fregueses pelo fascínio que a garota despertava. Em troca ofereciam comida e dormida nos fundos do comércio. Ella sentia-se gratificada, tinha um local para descansar à noite. Mas novamente foi flagrada pelos policiais na rua e levada a um asilo de órfãos no Bronx, onde viveu por dois anos.
Tinha 17 anos quando saiu e foi atrás de uma professora de piano que conhecera num daqueles restaurantes. Queria ser cantora e dançarina. A professora a acolheu, deu-lhe aulas e um quarto, e vendo o talento tão precoce, a inscreveu num concurso de cantoras amadoras num teatro no Harlem.
Ella ganhou e começou a conseguir trabalhos em apresentações de dança e canto. Tempos depois, com a vida se organizando, pagou uns detetives e reencontrou sua irmã. Soube também que o padrasto morrera na prisão.
Em meados dos anos 30, a cantora tinha várias composições, alguns shows, e já se firmava com o nome artístico de Ella Fitzgerald. Cantando e encantando a todos com sua voz de meio-soprano, dominando o swing do jazz, do blues e soul, apresentou-se daquela década em diante com Louis Armstrong, Duke Ellington, Dizzy Gillespie, Count Basie, Joe Pass, Oscar Peterson, Ellis Larkins, e tantos outros monstros.
Paralelamente a sua consagrada carreira artística, Ella Fitzgerald viu a vida pessoal repetir o sofrimento da mãe. No seu primeiro casamento, o marido, que lhe batia, foi descoberto como traficante. Ella divorciou-se com ele na prisão.
No segundo matrimônio, com o baixista Ray Brown, não conseguia engravidar e passou a criar a filhinha da irmã, que morava ainda com a tia. Quando esta morreu, a irmã, temendo se tornar tia da própria filha, pegou a criança de volta. Ella consegue engravidar, mas separa-se poucos anos depois.
No final dos anos 50, conhece um belo e misterioso norueguês. Apaixonam-se e casam-se em segredo, evitando manchetes de jornais. E fez bem! Em poucos meses, ainda em clima de lua de mel, descobriu que o rapaz aprontou na Suécia, esteve preso por ter roubado tudo de uma garota com quem se envolvera.
Já com um bom patrimônio e nome na galeria do jazz, deu um tranco no esbelto viking saqueador de dotes. O dinheiro dela, não! Divorciada, dedicou-se cada vez mais a cantar, cantar, cantar e namorar. A carreira solo em todos os sentidos.
Nos anos 80, Ella Fitzgerald teve um infarto, colocou marca-passo, e a saúde ficou agravada por diabetes. Com a visão comprometida, diminuiu o número de shows, e em 1993 teve as duas pernas amputadas. Afundou na depressão e passou a ser cuidada por enfermeiras.
Recebia nos fins de semana a visita da irmã e da sobrinha que a chamava de “mãezinha”. Três anos depois, na madrugada de 15 de junho, faleceu enquanto dormia, aos 79.
Uma vez, numa entrevista, perguntaram a Ella sobre sua trajetória, como foi sua vida, como chegou a ser a grande cantora que lotava teatros.- Desculpe-me, não tenho palavras. Talvez se eu cantar, você entenda – respondeu, disfarçando uma lágrima.
Foto: a elegância da cantora fotografada por Phil Stern em um hotel em Nova York, década de 50.