A Travesti, o Advogado e Cazuza

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Por Márcio Sotelo Felippe, publicado em Justificado – 

(Inspirado em fatos reais e inspirado em uma pergunta que todo criminalista já ouviu)




“Nas noites de frio é melhor nem nascer

Nas de calor, se escolhe: é matar ou morrer

E assim nos tornamos brasileiros

Te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro

Transformam o país inteiro num puteiro

Pois assim se ganha mais dinheiro” (Cazuza, O Tempo Não Para)

O rapaz viera de Minas fazer a vida em São Paulo. Dera-se razoavelmente bem. Comprara um opala usado, mas em boas condições. Uma madrugada apareceu morto no carro estacionado nas imediações da avenida Indianópolis. Um tiro na cabeça.

Na mesma noite a polícia prendeu o suspeito. Uma travesti teria assassinado o rapaz em um programa. Matar para roubar, latrocínio.

O jovem advogado nomeado pelo juiz entrevistou o réu antes do interrogatório. Ele negou. Negou para o juiz. Já havia negado para a polícia. Negou tudo o tempo todo. Serenamente.

O advogado impressionou-se com a fragilidade do inquérito. Não havia prova alguma. Ocorreu que a polícia recebera informação de um alcagueta. Amarrou circunstâncias e indícios fracos dando a tudo a aparência de racionalidade investigativa.  O informante nunca apareceu. Nunca pode aparecer. Se aparecer morre. O delegado mandou para o fórum. Deu certo. Denúncia por latrocínio.

A coisa toda era tão frágil que o advogado explodiu por dentro. Crime pesado com acusação precária transformavam um jovem advogado em hollywoodiano personagem de filme. A máquina do Estado tinha sua lógica vil. Crime pesado que saía em jornal sem solução era duro de engolir para a polícia. Um pagava. Mas havia alguém para mudar o enredo. Ele.

O defensor entendeu, pois, o jogo jogado. Era simples: acreditar no alcagueta. Ainda que fosse “fria” a delação, ou movida por vingança, ou por nada, apenas para mostrar serviço para a polícia, ele que movimentara toda a máquina do Estado. A polícia acreditou e convinha acreditar: resolvia um latrocínio. O Ministério Público acreditou. Na denúncia, in dubio pro societate e seja o que Deus quiser. Faltava o juiz acreditar. Uma aposta. Se desse certo, missão cumprida. Se não desse, o sol nasceria do mesmo jeito no dia seguinte.

“Não vai ser bem assim”, pensou o advogado no final do interrogatório.  Saiu do fórum indignado e foi tomar um café expresso ali na rua XI de Agosto, ao lado do Palácio da Justiça. Na época o fórum criminal era lá.  Sorveu o expresso curto, forte e sem açúcar entre murmúrios. “Incrível…delegados, juízes, promotores, a elite do Estado, todos carimbando a delação de um lumpen alcagueta. Se o povo soubesse como são feitas as leis, as salsichas e as decisões judiciais…”

O processo correu como o advogado estava prevendo. Nada que prestasse como prova.  Depoimento dos policiais que prenderam o réu e de uma tia da vítima que nem morava aqui e apenas cuidou do funeral. A audiência constrangeu todos. Deu pena da pobre mulher ouvindo aquela história de como seu sobrinho havia sido assassinado em um programa com uma travesti.

O juiz acreditou no alcagueta. Como o delegado e o promotor. Fundamentação um pouco mais elaborada do que a da polícia, arrumando melhor aqueles indícios e circunstâncias, mas tudo, afinal, resumiu-se ao informante das sombras para embasar uma pena pesada.

O indignado defensor foi ao presídio conversar com o réu antes das razões do recurso. Tinha algumas coisas a esclarecer. Absolutamente convencido da inocência do cliente, preparava uma peça arrasadora e irrespondível.

A travesti não era mais travesti. Havia retomado a aparência masculina.  Era então um “bíblia”. Na linguagem dos presídios, “bíblia” é o que se converte a uma religião.

A conversa foi breve.  O réu interrompeu bruscamente o advogado, antes que ele terminasse a pergunta

– Doutor…eu dei o tiro na cara do rapaz, doutor. Meus dias eram 24 por 48 horas, doutor. Ele não quis pagar. Atirei, peguei umas coisas dele e dei no pé…

“24 por 48…tiro na cara”.  O advogado nunca tivera a menor dúvida de que ele fora o primeiro miserável que a polícia achou para livrar-se do latrocínio, embarcando na armação de um alcagueta.  Porque um inquérito com aquela ausência de prova era inacreditável.  O personagem hollywoodiano largou o seu corpo e voou sobre as ruas de Santana.

Anos depois o advogado ouviu uma canção de Cazuza que dizia “meus dias são de par em par”. Cazuza dizia poeticamente algo semelhante, “par em par”, ao “24 x 48” daquele réu. Dormia 24 horas e dobrava os dias acordados. Par em par. Drogas ou remédios. Ao final das 48 horas, o que era o que, quem era quem, o que valia alguma coisa, o que era real?

Era assim que a polícia trabalhava. Apostava. Muita gente inocente ia para cadeia, mas de vez em quando a roleta parava no lugar certo. Duas vezes por dia um relógio quebrado acerta as horas.

O ânimo era outro, mas advogados têm prazos. Foi para o escritório e avançou para depois da hora do expediente fazendo um extenso e fundamentado recurso. Como epígrafe uma citação livre de Kant: “o princípio da moralidade e o princípio da publicidade não podem ser incompatíveis”. Nem esperava que apreciassem a sutil tirada filosófica: quem podia dizer qual, de verdade, o fundamento daquela condenação? Toda a sofisticada máquina do Estado movimentada pela delação de um alcagueta?

* * * * * *

Trinta anos depois daquele dia em Santana o advogado jantava com um conhecido.

– Você defende gente que sabe culpada. Como você pode fazer isso?

Já ouvira tantas vezes aquela pergunta…nunca soube se sair bem dela. Em geral percebia um muro intransponível de linguagem e conceitos.

O advogado ergueu a taça de vinho devagar e levou à boca pensando na resposta à pergunta desagradável. Numa fulminante associação de ideias veio a frase de 30 anos antes. “24 por 48, doutor… tiro na cara”. 

Articulou mentalmente a resposta.

“Consigo porque é meu dever e esse dever está apoiado em um princípio superior.

Se culpados são condenados sem provas, pessoas inocentes também começarão a ser condenadas sem provas. A sociedade ganha mais deixando solto o réu culpado contra quem não há provas suficientes do que mandando para a cadeia inocentes. Por isso há o princípio da presunção de inocência.

Sociedades democráticas não são construídas sem princípios e princípios não podem ser respeitados somente quando convém.

Então, meu caro, ou o Estado prova ou o Estado solta. Não pode condenar pela mera convicção subjetiva de delegados, promotores ou juízes, ou por uma aposta deles na alta probabilidade de o acusado ser mesmo culpado. Já os flagrei fazendo isso e sabia que o réu havia cometido um crime horroroso. Mas era só uma aposta do Estado. Aposta casualmente correta, mas, como toda aposta, irracional e irresponsável. Ouvi a confissão do réu e a esqueci quando atravessei o portão do presídio.”

Isso tudo ele pensou. Depois balançou a cabeça num gesto de desânimo, como quem diz “deixa pra lá”, e respondeu, pousando a taça na mesa:

– Os réus não contam isso pra gente.

Depois de 30 anos, aprendera que uma noite ou em uma conversa de bar não se dá um salto na consciência de quem não assimilou ainda o processo civilizatório. Sim, muita gente boa e razoável já conversara algo assim com ele, mas aquele conhecido não estava enquadrado no conceito de gente boa e razoável. Mas prometeu a si mesmo um dia voltar ao assunto com aquele seu interlocutor.

Marcio Sotelo Felippe é pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal.
Junto a Rubens Casara, Marcelo Semer, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.

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