Com a sensibilidade que vai do coração à ponta dos dedos, Lovato tecla a vida em sua plenitude, em sua singeleza. O Bem Blogado se sente muito honrado em tê-lo como amigo.
Por Claudio Lovato, jornalista e escritor –
As melhores histórias quase sempre estão onde menos esperamos. Estes três pequenos textos, que incluem elementos de ficção, retratam ocasiões em que o que era, a princípio, imperceptível se tornou, para mim, evidente e impactante.
RÊS FLASHES
Teesside, Inglaterra, meados dos anos 1990.
Engenheiro ainda jovem, mas já experiente, ele era o único brasileiro numa pequena multidão de engenheiros ingleses. Quando chegou àquele canteiro de obras navais no nordeste da Inglaterra, sequer falava o básico em inglês. Ficava isolado. Os colegas não se aproximavam dele e não o levavam a sério.
Sua presença era entendida como fruto de uma imposição da empresa brasileira que adquirira o controle acionário da companhia local.
Então, um dia, ele criou uma maquete como nenhum daqueles ingleses jamais havia visto. Uma maquete que proporcionaria um ganho expressivo no cronograma da fase de aprovação do projeto. Uma maquete feita com madeira curva que ocupava boa parte da sala de reuniões.
Foi o primeiro passo para conquistar o respeito da equipe à qual jamais desistiu de se integrar, mesmo depois de tantos almoços solitários em sua sala pequena e escura nos fundos da área administrativa.
Quando o conheci, ele já era presença requerida em todas as festas de aniversário, em todos os casamentos e em todas as outras confraternizações promovidas pelos ingleses.
Tete, Moçambique, meados dos anos 2010.
Não importava aonde fôssemos, o homem do rifle ia atrás de nós. Quando percorríamos o canteiro de obras daquele projeto carbonífero, ele estava lá, caminhando no exato mesmo ritmo dos que iam à frente, com seu rifle suspenso no ombro por uma grossa alça de couro.
Quando fomos caminhar nas margens do rio Zambeze, para tirar fotos, ele estava lá, atento a todos os movimentos (existentes, pressentidos ou imaginados, na água ou na terra), sempre calado, com seu chapéu velho de lona e traje cáqui.
Em determinado momento, eu me aproximei dele e puxei conversa. Ele tinha nascido na região. Estava ali para proteger os trabalhadores da obra e os visitantes, ele me disse. Tentaria evitar ao máximo ter que ferir ou abater algum animal, só agiria em último caso, mas se fosse preciso ele o faria, assegurou.
Perguntei se já havia ocorrido de ele ter atirado em algum e ele me disse que não, e foi esse o único momento em que percebi um ar de contentamento em sua expressão. Desejei muito e pedi aos poderes superiores que a intervenção dele não fosse necessária – e fiz isso pensando não apenas na minha segurança.
Santo Domingo, República Dominicana, meados dos anos 2010.
Tipo tranquilo e educado, têmporas tomadas por cabelos brancos, ele era motorista do escritório central da empresa que construía uma rodovia e uma usina termelétrica no país. Ao fim de uma semana de trabalho, coube a ele me levar ao aeroporto.
Em certa altura do trajeto passamos por um grupo de meninos jogando beisebol numa praça – uma pelada de beisebol, o esporte mais popular da República Dominicana.
De imediato começamos a falar do esporte. Ele queria ter sido jogador de beisebol. Quase chegou a ser profissional. Batedor. Canhoto.
Percebi, embora ele mantivesse atenção total à estrada, que seus olhos ficaram molhados. Ele disse que sentia muita saudade dos tempos em que só pensava no beisebol, mas que estava tudo bem, estava tudo certo, porque a vida é como é, e das imposições da realidade ninguém escapa.