Por Eliana Alves Cruz, publicado em The Intecept Brasil –
EXERCER UM MANDATO no Brasil pode ser, literalmente, fatal. O dia 14 de junho marca os 90 dias do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes sem que nenhuma conclusão tenha vindo a público sobre o caso. Seus assassinos continuam ignorados embora o assombro com a forma brutal do crime tenha comovido o mundo. Segundo dados da União de Vereadores do Brasil (UVB), pelo menos 23 prefeitos e vereadores foram assassinados no país entre 2017 e março deste ano, mês da morte de Marielle.
Presença do crime organizado, disputas por terra, conflitos entre elites e questões da dinâmica de cada localidade dão conta do que muita gente já sabia, mas que é sempre chocante constatar: o nosso total despreparo para a democracia. A “solução final” parece ser sempre a opção mais prática quando os interesses são contrariados, e a banalização do sangue derramado parece poupar apenas aqueles que fazem parte de uma casta protegida pelas benesses de um Estado excludente.
Passados três meses do desaparecimento da vereadora carioca, familiares, amigos, partidários e uma parcela significativa da população assiste perplexa ao ataque contínuo a toda e qualquer liderança que erga a voz para defesa de direitos dos que historicamente são massacrados.
Números não faltam. Segundo dados da Anistia Internacional, só até o mês de agosto de 2017 a mira das armas de fogo acertou os corpos de 58 defensores dos direitos humanos. No ano anterior, 2016, 66 pessoas perderam a vida por lutar por mais igualdade. Os números colocaram o Brasil como um dos países mais perigosos do mundo para ativistas dos direitos humanos. Uma fama que a imprensa confirma. Conforme um levantamento do Estadão, em cinco anos foram 194 assassinatos de políticos ou ativistas sociais.
Assim como o Estadão, na ocasião da morte de Marielle, em março deste ano, diversos portais de notícias se debruçaram sobre sua própria produção e chegaram a números assustadores no mandato de 2017-2018, com cerca de 40 mortes de vereadores, prefeitos e ex-prefeitos. Este número aumenta se forem incluídos suplentes, vice-prefeitos, parentes etc.
Um estudo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, realizado pelos cientistas políticos Felipe Borba e Ary Aguiar, indica que de 2008 para cá 79 candidatos foram mortos durante o período eleitoral: foram mortos 63 candidatos a vereador, seis candidatos à prefeitura, três à vice, quatro candidatos a deputado estadual e três a federal. O Estado com maior número de assassinatos foi o Rio de Janeiro, com 13 vítimas. Como estamos em pleno período eleitoral, qual será a estatística produzida ao final das apurações de outubro deste ano?
Não apenas as bandeiras levantadas por Marielle Franco eram urgentes – sua simples existência era particularmente explosiva.
A vereadora nascida na Maré está incluída em outra estatística perversa: a de morte de mulheres negras. Segundo o Datasus, as negras foram 62,8% do total de mulheres mortas por agressões em 2015. Em 2006, elas eram 44%. As negras também foram maioria entre as mulheres mortas por ação violenta de agentes do Estado: 52% eram pardas e pretas contra 31% de brancas. O sexismo é um mal que se agrava muito quando é somado ao racismo. Não apenas as bandeiras levantadas por Marielle Franco eram urgentes – sua simples existência era particularmente explosiva.
Marielle exercia seu mandato alicerçada e respaldada por uma comunidade carente de lideranças nos espaços formais de poder. É de se esperar que uma mulher negra, lésbica, que não tinha medo de mexer na “casa de marimbondos” que se transformou a questão de segurança pública no Brasil, de um modo geral, e no Rio, em particular, seja um obstáculo para os que sempre dominaram determinados setores da sociedade.
O que nenhum de seus eleitores nem nos piores pesadelos imaginou é que ela tivesse a cabeça alvejada por sete tiros sem qualquer disfarce, em uma via movimentada da zona norte carioca. E que 90 dias depois, camisetas estejam sendo vendidas com seu rosto, mas não se tenha nenhuma notícia de seus assassinos.
Pela alegria e entusiasmo com que exercia seu mandato, Marielle não queria ser mártir de nada. Ela queria fazer parte de um novo tempo na política brasileira. Aquele em que representatividade importa… e vidas também.