E o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, na coluna “A César o que é de Cícero”, reverencia a negritude neste texto já maduro sobre o 13 de maio. Data considerada como da falsa abolição. Portanto, não é comemorada pela população negra, que considera, isso sim, o 20 de Novembro, o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra.
“(Para meu afilhado Bernardo Melquior, que me ensinou como poucos a importância de se entender bem o jogo do basquete e da vida)
Não deveria nem falar de futebol, mas sou do tempo em que uma seleção brasileira não era seleção se não tivesse um bom preto no escrete. Sou do tempo em que qualquer menino bom de bola a gente chamava de Pelé.
Não deveria nem falar dos meus vínculos afetivos, mas meu pai, que Oxalá o tenha, era mulato, de pai branco e mãe negra. Eu sou branco feito uma vela, mas não meto bronca de branco, nunca meti. Sou de olhos fundos espanhóis, sou mouro. Ou melhor, sou o Cícero Sarará, que é como meu compadre José Roberto me chama para me diferenciar do Cícero Negão, que me chama de xará.
Não deveria nem falar de beleza, mas a minha comadre Laurenice é muito bonita. Mas é muito mais de boniteza que eu quero tratar. Porque ela é mais que bonita. Ela é a preciosa beleza e força da margarida, de quem somos tão ciosos.
Não deveria nem falar de feijão preto nem dos quitutes da Bahia nem de religião, mas gosto de feijoada, de cocada e de acarajé. Adoro os spirituals das pessoas das igrejas dos Harlems. Gosto de ficar biruta de Milton Nascimento, de Jorge Benjor, de Gilberto Gil e de João Bosco, que, filho de libanês, canta a negritude mineira profunda para nosso deleite.
Não deveria nem falar da elegância da cultura negra, mas Layla, minha mulher, filha de libaneses, tem uma queda vertiginosa por Chico Buarque e por Wilson das Neves, que para ela lembra meu pai, pela elegância. E Paulinho da Viola? E o baile Charme?
Francisco, meu filho, é siderado por Michael Jackson, o performer que se branqueou por causa da sociedade – ninguém nunca me tirou tal hipótese da cabeça.
Não deveria nem falar de tevê aberta nem de trilha sonora, mas a canção “Milagres do povo”, de Caetano Veloso, que abria a série da Globo “Tenda dos milagres”, é uma das mais belas de todos os tempos. Quem é ateu e viu milagres como eu. Um dia eu vi o Milton Gonçalves, o homem com cara de presidente do Brasil, o cara que paira para além da história.
Não deveria nem falar de cinema, mas “Eu não sou seu negro” (2017) é um dos melhores documentários que já vi na vida. O escritor James Baldwin conviveu com Martin Luther King, Malcom X e Medgar Evans, três homens da pesada, três lideranças ceifadas na década de 1960.
Um jovem Bob Dylan, ainda na fase folk, fala de Medgar Evans em “Only a Pawn in Their Game” (“Apenas um peão no jogo deles”, em tradução literal). Dylan argumenta: o que está em jogo é muito maior do que o homem que aperta o gatilho para matar Medgar Evans. Assim como nós sabemos que havia muito mais em jogo na execução de Marielle Franco em 2018.
Aos poucos eu vou aprendendo, temos muito o que aprender, ainda serão muitos os Treze de Maio. Ainda não li Abdias do Nascimento nem Lélia Gonzales. Já li Conceição Evaristo, graças a um camarada meu que me mandou alguns títulos da escritora em PDF – à época me veio à idéia de fazer uma leitura comparativa entre Conceição Evaristo e Alice Walker. Li poemas de Carlos de Assumpção, poeta das antigas dos fracos e oprimidos. Vamos dar uma olhada em um dos seus poemas, como quem não quer nada?
Em “Prece”, o eu-lírico se dirige ao poeta Castro Alves, o poeta da Abolição.
Castro Alves, que estais no céu
santificado também seja o vosso nome
Olhai por nós agora e sempre do além
Estendei as mãos sobre a cidade
Acendei a chama da liberdade
do amor da fraternidade
como vossos versos ensinado têm
Rumo às alturas às estrelas
guiai nossos passos Castro Alves
agora e sempre por todo sempre
Amém
Trata-se de um texto em que o “Pai Nosso” é parodiado. Castro Alves ocupa a posição de “Pai” com pê maiúsculo, isto é, aquele a quem se dirigem as súplicas de liberdade e fraternidade.
Eu não queria lhes dizer, mas eu já joguei com o Pelé, o da Baixada, o cara que faz parecer tudo mais fácil.
Enfim, estava atrasado com o texto do Treze de maio. Não estou mais. Eu pensei nele ao longo da semana passada. E estou pensando nele agora. Educação, saúde e segurança, para se ser o que se é.”
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019), Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.