Por Patrícia Comunello no Jornal do Comércio –
Sigilo fiscal é um daqueles tabus que, ao ser quebrado, coloca o Brasil frente a frente com uma das suas faces mais escandalosas, como qualifica o economista gaúcho Sérgio Wulff Gobetti: o fato dos brasileiros muito ricos pagarem pouco imposto.
Quando a Receita Federal (RF) liberou a declaração do Imposto de Renda Pessoa Física de 2016 do megaempresário Joesley Batista, preso sob acusação de ter acesso à informação privilegiada para lucrar no mercado financeiro, Gobetti vibrou. Batista recebeu R$ 105 milhões e recolheu apenas R$ 340 mil de IR – 0,3% de carga.
O exemplo era perfeito para o gaúcho validar o que tem sido seu foco desde 2015, que atraiu a atenção de um dos gurus dos estudos sobre renda e tributação na atualidade, o francês Thomas Piketty.
Analista de carreira do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Gobetti busca provar, com dados da RF, quanto o País é imbatível no mundo em desequilíbrios gerados pelo sistema que taxa mais pobres e classe média e poupa os “super ricos”. Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, o economista lista medidas para corrigir as distorções e para “socializar” os custos de déficits como o da Previdência. Além disso, ele aponta os prejuízos a gerações futuras se nada for feito e que nem mesmo os governos de esquerda de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016) agiram para mudar este quadro.
Jornal do Comércio – O Banco Mundial (Bird) defendeu mais cortes para ajustar o déficit público. O caminho é este mesmo?
Sérgio Wullf Gobetti – Devemos enfrentar a crise fiscal e também melhorar a qualidade do gasto, mas nem todas as medidas sugeridas pelo Bird são corretas e suficientes. O diagnóstico é exagerado sobre a qualidade do gasto social, pois o Brasil é o país da América Latina cujas despesas de previdência e assistência social mais contribuem para a redução da desigualdade. A magnitude do corte sugerido é infactível e, se fosse aplicado em meio à fragilidade econômica atual, haveria efeitos negativos sobre o crescimento. E já ocorrem cortes em gastos. O investimento público de 2017 será o menor em 20 anos. O déficit aumentou porque a receita despencou, como reconhece o próprio Bird.
JC – O que deve ser feito, então?
Gobetti – O crescimento do gasto deve ser controlado e uma reforma da Previdência deve ser feita, mas no curto prazo é preciso fazer um ajuste pelo lado das receitas para reduzir o déficit. Nossa carga tributária é alta para os padrões de economias semelhantes, mas está na média da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), onde o gasto social segue o nosso nível. O problema não é o patamar, mas a composição da carga. O Brasil cobra muito mais imposto sobre o consumo, penalizando os mais pobres que pagam 40% e gastam todo seu dinheiro; e cobra relativamente pouco sobre a renda e o patrimônio.
JC – Como se demonstra isto?
Gobetti – A janela se abriu em 2014 e 2015 quando a RF começou a divulgar dados detalhados das declarações. Sabíamos que o País era extremamente desigual, mas os dados revelaram que a situação é muito mais dramática. Descobrimos que os ricos não só pagam pouco imposto como pagam menos imposto do que a classe média alta. Por quê? A principal fonte de renda dos muito ricos são lucros e dividendos distribuídos a acionistas, que são isentos. Já os salários, principal renda da classe média alta, são tributados em 27,5%. No Brasil, a estrutura do IR é progressiva para salários e incide em tudo que a pessoa recebe. Verificamos que a carga tributária de quem ganha um, dois e três salários mínimos cresce e chega, no máximo, à média de 11% para rendas entre R$ 160 mil e R$ 360 mil por ano, faixa da classe média alta. A partir daí, a tributação vai reduzindo até que, no topo, onde está quem ganha mais de R$ 2 milhões por ano, a carga, em média, cai a 6% sobre a renda total, podendo ser maior e até menor, que foi o que se descobriu no caso de Joesley Batista. A quebra do sigilo fiscal mostrou que ele recebeu, em 2016, R$ 105 milhões, mas pagou apenas R$ 340 mil de IR, ou seja, 0,3%, tudo porque 95% da renda dele vieram de lucros e dividendos distribuídos.
JC – Por que lucros e dividendos de pessoa física são isentos?
Gobetti – O Brasil resolveu ser pioneiro em uma proposta de isenção de dividendos que surgiu no mundo. O País foi um dos primeiros a surfar esse modismo dos anos de 1980. Antes disso, os lucros sobre dividendos eram tributados em 15%, que significaria hoje uma receita de R$ 50 bilhões a R$ 60 bilhões ao ano! Aquela onda ideológica preconizava duas medidas: reduzir a progressividade, para não ter alíquotas tão elevadas para os mais ricos, e suprimir por completo a tributação dos lucros em duas fases, incidindo apenas nas empresas. Nos Estados Unidos (EUA), houve redução das alíquotas máximas de imposto de renda de 70% para 28%, e, no Brasil, cortou-se de 50% para 25%. Só que os EUA nunca chegaram a isentar lucros e dividendos distribuídos, como nenhum outro país desenvolvido. Já o Brasil adotou em 1996, seguindo alguns países do Leste europeu, como a Estônia. México e Grécia, por exemplo, isentaram, mas depois voltaram atrás.
JC – Mas o lucro distribuído não foi tributado na empresa?
Gobetti – Sim, mas nos países desenvolvidos há incidência novamente quando o acionista recebe os dividendos na sua conta. A questão é o nível da tributação em relação a outras rendas de capital. A ideia que se difunde no mundo moderno é que o lucro pode ser mais tributado quando a taxa de retorno da empresa é muito alta. Países nórdicos têm evoluído neste sentido e influenciam outros europeus. Ainda assim, essa tributação para pessoa física e jurídica é de 56% nos Estados Unidos, e de 42% na OCDE, bem acima do que ocorre no Brasil, onde hoje, teoricamente, vai até 34% nas empresas e é isenta para pessoas físicas. Mas há regimes simplificados, como o Simples, e outros incentivos que fazem a taxação variar de 6% a 24% e 25%. Ou seja, a carga é menor e é muito diferenciada dependendo da empresa, o que não é bom. A lógica econômica deveria ser o nível da rentabilidade, e não a forma de organização da empresa. Falar em reforma tributária nas últimas décadas virou sinônimo de mexer no Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Não que isso não seja importante, mas não atingirá pontos nevrálgicos de um sistema que tributa pouco os ricos e onera empresas e os pobres.
JC – Mesmo após conhecer esta realidade, não se vê reação?
Gobetti – Há uma miopia da sociedade, falta de compreensão sobre isso. A divulgação de dados é importante para abrir os olhos das pessoas. Há quem não queira ver a realidade, mas os dados mostram que quem mais paga imposto de renda é a classe média alta, que vive mais de salário do que de outras rendas. E quem vive de renda de capital paga pouco. Mesmo que o dono da JBS gaste R$ 10 milhões em consumo, não chegará à carga que o pobre paga. Descobrimos ainda, ao analisar os números, que um milésimo (0,1%) mais rico do País, que são 140 mil pessoas, ganha mais de R$ 3 milhões por ano e soma 14% da renda nacional, contra a fatia de 12% dos 50% mais pobres – ou 70 milhões de pessoas, um terço da população. Os ricos são muito mais ricos e pagam muito menos imposto do que se imaginava. A concentração de renda no Brasil é uma das maiores do mundo, algo inaceitável para países democráticos.
JC – O que deveria ser feito para tentar equilibrar esta carga?
Gobetti – Uma reforma na renda do trabalho e capital, focando a simplificação e o alinhamento de alíquotas, além da introdução de maior progressividade no sistema. Não podemos ter uma diferença de carga dependendo da organização da empresa. As rendas de capital têm de ser tributadas de forma mais equânime e parecida. A diferenciação que tem de ser feita é pela taxa de rentabilidade que se obtém com o capital e, ao mesmo tempo, uma diferenciação fruto da renda individual, com base no princípio da progressividade, pelo qual quanto mais se ganha, mais se paga. Hoje, há baixa progressividade e um amontoado de taxas que estimulam o planejamento tributário. Temos de mudar os dois lados para termos um sistema mais enxuto, com menos diferenças de alíquotas, e a diferença tem de ser de acordo com o nível de renda de cada um.
JC – Piketty fez dura crítica ao Brasil por tributar muito pouco doações e heranças. O economista francês tem razão?
Gobetti – A alíquota é muito baixa mesmo, mais que em qualquer país desenvolvido, onde vai de 40% a 60%. Ninguém defende que seja tão pesado, mas não há razão para ficar, em média, em 4%, quando os estados têm autorização do Senado para adotar 8%. Se existe um tipo de tributação que, do ponto de vista da teoria econômica internacional, os economistas menos divergem, sejam eles mais ou menos liberais, é este. A razão é porque não há nada menos meritocrático do que a renda oriunda de herança, que aumenta as vantagens competitivas de quem a recebe em relação ao resto da sociedade. Isso tende a se agravar ainda mais no futuro, porque o crescimento populacional é cada vez mais baixo. No passado, a herança era dividida entre quatro a 10 filhos. Hoje, os mais ricos transferem patrimônio a um ou dois filhos. Então, a concentração de renda e riqueza tende a ser cada vez maior, por isso economistas liberais e não liberais defendem essa tributação.
JC – Há reações quase irracional diante disso. Por quê?
Gobetti – Porque as pessoas pensam com o próprio umbigo. É natural que quem recebe herança não queira pagar tributos. O problema é que este pensamento subjetivo se transforma em manifestação política com pretensa racionalidade verbalizada por movimentos que acham que estão certos. Um liberal brasileiro deveria ficar encabulado de pensar isso se ouvisse liberais de todo mundo e o que ocorre em países desenvolvidos. Uma parte dos liberais brasileiros está num nível de rudimentarismo ideológico muito grande.
JC – Podemos esperar mudanças nisso nos próximos anos?
Gobetti – É difícil prever. Muitos falam que deve ter mudança no próximo mandato presidencial. Talvez estejam se baseando no fato que este tema ganhou destaque internacional e nacional e ecoa em setores importantes da sociedade. Não é uma pauta só da esquerda. Economistas liberais e outros com um mínimo de bom senso reconhecem que é preciso mudar, pois a tributação brasileira é escandalosamente benéfica com os mais ricos. O problema é que corremos grande risco de sermos dominados por ignorantes no período futuro, pois não sabemos quem governará nem como será a composição do Congresso Nacional.
JC – Os governos de Lula e Dilma não pautaram a mudança na tributação sobre a renda…
Gobetti – A esquerda não enfrentou este debate nos governos do Partido dos Trabalhadores. Isso se explica pela ilusão de que a desigualdade estava caindo, graças a programas como o Bolsa Família, e por uma política, principalmente de Lula, de não gerar atritos com a elite brasileira. Mas o cenário nacional e a repercussão sobre as desigualdades colocaram o tema no centro do debate. Quase como se estes setores tivessem tomado um choque de realidade. Portanto, não é só um movimento oportunista da esquerda porque agora é oposição. Esse debate surge pelos dados que vieram à tona e sensibiliza amplos segmentos que têm bom senso e reconhecem que algo tem de mudar para termos uma tributação menos injusta.
JC – Qual a conexão dessas mudanças com a Previdência?
Gobetti – A tributação dos dividendos é uma alternativa para ajudar a cobrir o custo do déficit público. Só que as propostas em pauta passam longe disso, limitam-se às regras da Previdência. Temos de fazer com que a socialização do déficit das aposentadorias seja maior e que não atinja apenas o andar de baixo ou o intermediário, da classe média. A classe alta está imune a tudo, o que é surpreendente.
JC – O que esperar do futuro de um País com esta matriz?
Gobetti – Prefiro repetir o que Piketty disse ao vir ao Brasil, em setembro, que há consequências. A extrema desigualdade gera duas coisas: reduz a produtividade econômicas, prejudicando o crescimento do País; e mina o tecido social, ampliando tensões sociais que, mais cedo ou mais tarde, terão efeitos. Na Europa e nos EUA, a elite não queria pagar mais impostos; mas, com guerras e revoluções do século XX, foi forçada a aceitar. Existe a opção de nos anteciparmos ao agravamento da situação e evoluirmos para um sistema tributário mais justo de forma racional e menos turbulenta.
Perfil
Sérgio Wulff Gobetti tem 50 anos, nasceu em Porto Alegre, é jornalista e economista de carreira do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Concluiu mestrado em 2004, e doutorado em 2008, ambos em Economia na Universidade de Brasília (UNB). Atua em temas como política fiscal, federalismo e tributação. Desenvolve estudos sobre renda e desigualdade desde 2009, quando ingressou no instituto. Entre 2010 e 2011, foi assessor especial do então ministro da Fazenda Guido Mantega. Em 2011 ainda até 2013, foi secretário adjunto de Política Fiscal e Tributária da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda, quando se dedicou a trabalhos para que propunham um novo regime fiscal baseado em metas ajustadas ao ciclo econômico. Um de seus artigos de maior repercussão é de 2016, junto com o colega de Ipea Rodrigo Octávio Orair, intitulado Progressividade tributária: uma agenda negligenciada. Em 2017, ele volta ao tema no livro Desigualdade e Tributação, com textos de diversos economistas, entre eles o francês Thomas Piketty.