Por Cíntia Alves, publicado no Jornal GGN –
Fogão de R$ 9 mil? Microondas de R$ 5 mil? Armários de R$ 380 mil? A realidade do triplex é outra, e nem era necessário esperar o MTST ocupar o imóvel para descobrir isso por meio de imagens sem retoques. Um relatório da PF, de 2016, já alertava para “possíveis discrepâncias” e “dificuldade” em enxergar parte dos valores contratados no projeto
Jornal GGN – A recente ocupação do MTST no triplex do Guarujá trouxe à tona uma discussão sobre como a Lava Jato, em conluio com a velha mídia, tentou criar no imaginário popular a ideia de que trata-se de um imóvel de luxo, totalmente reformado e mobiliado com dinheiro desviado de contratos entre OAS e Petrobras – imputação que a Lava Jato não conseguiu provar, apesar de ter levado Lula à prisão.
A maioria dos grandes veículos de comunicação nunca ousou fazer como o MTST, mostrando detalhes do triplex por dentro, em vídeos e fotos sem retoques. Abandonando a apuração in loco, a imprensa assumiu o risco de ser parcial quando foi abastecida com informações obtidas junto a uma das partes do processo: a que estava interessada em ver o petista atrás das grades.
A título de exemplo, em janeiro de 2016, com “investigadores” como fonte, o Estadão emprestou sua credibilidade à fake news sobre o triplex luxuoso, divulgando que a geladeira comprada para o apartamento custara R$ 10 mil. O microondas, R$ 5 mil. O forno elétrico, outros R$ 9 mil. No “mercado de luxo”, a OAS teria até encomendado uma “escada em caracol” por R$ 24 mil.
A realidade no interior do triplex, como se vê nas imagens do MTST, é outra: o imóvel em estado de deterioração possui em sua cozinha modesta um fogão de piso com 4 bocas, comprado lá em 2014. Segundo um laudo da Polícia Federal feito março de 2016, o mesmo eletrodoméstico custava menos de 10% do que informou o Estadão: R$ 845,00. O microondas, R$ 574,00. A escada em caracol? Nunca foi instalada, mas seu valor entrou na conta que Lula foi obrigado a pagar.
Dois anos depois da matéria, com Lula às vésperas de ser julgado em segunda instância, o mesmo jornal divulgou outro texto, entitulado “Por dentro do triplex”, onde consta link para o laudo da PF de 2016, com os valores empregados pelos procuradores de Curitiba na denúncia apresentada a Sergio Moro.
Comparando o relatório da PF e a denúncia do Ministério Público, é possível detectar uma omissão por parte dos procuradores: eles não inseriram na peça que foi levada a julgamento os trechos em que os peritos que visitaram o apartamento alertaram para “possíveis discrepâncias” e “divergências” entre o que constava no orçamento da reforma e o que, de fato, parecia ter sido realizado.
No relatório, a PF escreveu que, por considerar uma tarefa muito difícil, não averiguou se os valores que constavam em contratos e notas fiscais referentes à reforma, que estavam em posse da Lava Jato, correspondiam aos serviços no imóvel em termos quantitativo e qualitativo.
O laudo falava em “dificuldade” em enxergar parte das melhorias que foram contratadas, e deixou claro que, mesmo diante dessa percepção, a PF assumiu os documentos recebidos dos investigados como se fossem verdadeiros, e se limitou a listar no relatório o que encontrou na vistoria, sem fazer comparação com preços de mercado. Os federais deixaram a cargo dos donos da acusação a iniciativa de solicitar uma perícia específica para isso, o que não ocorreu.
A questão é delicada porque, no final das contas, o MPF imputou a Lula um triplex de R$ 2,4 milhões, em valores atualizados. E na sentença de Moro, este problema ganhou uma dimensão ainda maior quando o juiz descontou o montante de um suposto “caixa geral” de propina da OAS com o PT, no valor de R$ 16 milhões.
OS NÚMEROS DA CONSTRUÇÃO E REFORMA
A Lava Jato condenou Lula por um triplex de R$ 2,4 milhões. Neste valor estão inclusos R$ 1,147 milhão do imóvel, mais R$ 926 mil da reforma e outros R$ 350 mil em móveis e eletrodomésticos, que totalizam outros R$ 1,2 milhão.
Os R$ 1,147 milhão sairam da diferença entre uma cota parte que dona Marisa Letícia tinha junto à Bancoop (e que lhe daria direito a um apartamento no Condomínio Solaris) e o valor médio do triplex em 2014, que era de R$ 926 mil. Ou seja, naquele ano, o imóvel teria custado a Lula, nas contas da Lava Jato, R$ 717 mil.
Na denúncia, os procuradores atualizaram todos os valores para o ano de 2016, por isso o valor de R$ 717 mil saltou para R$ 1,147 milhão.
Nos valores de 2014, a reforma custou R$ 777 mil e as aquisições junto à Kitchens e Fast Shop, R$ 293 mil (descontando um calote que é abordado mais abaixo).
A TALLENTO
A Tallento – empresa que ajudou os procuradores, com documentos e delações, a sustentar que o triplex havia sido “customizado” para o “cliente” Lula – só havia trabalhado em parceria com a OAS construindo stands e apartamentos decorados. Jamais havia feito, a pedido da empreiteira, qualquer reforma de interiores. Ainda assim, curiosamente, ganhou o direito sobre a obra que seria destinada a um ilustre ex-presidente.
Segundo os autos, a Tallento foi indicada por um funcionário da própria OAS Empreendimentos, e emitiu notas comprovando o recebimento de R$ 777 mil para fazer a obra em 3 meses, entre julho e setembro de 2014.
Apenas a leitura do relatório da PF e da denúncia do MPF é insuficiente para decifrar como exatamente a Tallento empregou os recursos orçados para a reforma.
O relatório da PF informa apenas que a maior parte desse valor foi usada na “execução de serviços de cobertura”, provavelmente relacionada à área do deck com piscina. Além disso, estaria incluso nele a compra (tomada da GMV, uma empresa de Curitiba) e instalação (da TNG, de São Paulo) de um elevador privativo, que se deu entre outubro e novembro. (Ele não aparece em alguns vídeos do MSTS, mas no do UOL, sim).
Na página 115 da denúncia há uma lista genérica com os serviços que teriam sido feitos em cada cômodo do apartamento, sem valores correspondentes.
No laudo pericial, a PF escreveu que algumas “obras descritas nos orçamentos elaborados pela empresa Tallento sejam de dificílima constatação”.
Quanto ao que conseguiu identificar na reforma, a PF destacou a “instalação de um elevador hidráulico interno ao apartamento, instalação de pisos rodapés, pintura geral, construção de uma cobertura metálica no último pavimento, e a alteração de leiaute [sic] com remoção e a inclusão de paredes escadas, fato que ocasionou acréscimo de área útil privativa.”
Sobre o valor alto, a PF anotou que poderia estar relacionado a uma série de fatores “desconhecidos”, como “pressa na execução da obra pelo contratante, marca da empresa contratada que está associada ou não garantia de qualidade da obra. possível relacionamento prévio entre as empresas ou interesse em estabelecer algum tipo de parceria, bem como habilidade negociar ou outros aspectos de difícil ou impossível mensuração, que são fundamentais para definição dos preços.”
Por conta disso, o valor que caracteriza o triplex como luxuoso, na mídia, “não foi objeto deste laudo”. A PF preferiu não “comparar os valores pactuados entre as empresas a preços praticados no mercado da construção civil”, sustentado que tratava-se de uma negociação entre empresas privadas.
KITCHENS
A Kitchens, empresa que fez os móveis, cobrou R$ 320 mil por armários de cozinha, área de serviço, 4 dormitórios, 2 banheiros um lavabo, além da churrasqueira. A FastShop emitiu notas que somam apenas R$ 7,5 mil em eletrodomésticos.
Nas mãos dos procuradores, os valores foram atualizados para R$ 342 mil e R$ 8,9 mil, totalizando R$ 350 mil.
Uma arquiteta consultada pelo GGN, que preferiu não ser identificada, analisdou as imagens feitas pelo MTST e pelo UOL, e avaliou que os móveis pareciam de “baixo padrão”, “com acabamentos que parecem ser de construtora. Apenas pessoas que não podem investir muito mantém esses acabamentos.”
O relatório da PF, de 2016, já mostrava o estrago nas prateleiras instaladas acima da churrasqueira e sinalizava uma série de estragos que não deveriam existir se o projeto fosse de “qualidade”, pois incluiam infiltrações internas e externas em áreas que deveriam ter sido impermeabilizadas, segundo o projeto.
A Kitchens foi escolhida, de acordo com o MPF, porque havia feito a obra do sítio de Atibaia.
Os documentos da Lava Jato mostram que, embora ela tenha cobrado R$ 320 mil pelos móveis, ela tomou um calote de cerca de R$ 33 mil da OAS, e acionou a Justiça por conta disso. Ainda assim, o valor global do contrato foi contabilizado no custo final do “triplex de luxo” e cobrado de Lula.
Isso mostra que a tática da Lava Jato para inflar o preço do triplex foi a de recolher as notas fiscais e comprovantes de pagamentos que atestam a relação comercial entre a OAS e empresas escolhidas a dedo para a reforma e decoração; somaram tudo, sem apurar a fundo, e depois atualizaram para valores de 2016.