E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, nos conta o segredo de um cofre.
Não sei se ele já fazia parte do cenário quando cheguei pela primeira vez à rua dos Timbiras, em Maceió. O fato é que certa feita reparei que havia na rua, sobre a calçada, um enorme cofre do tamanho de uma geladeira. Deitado, abandonado, em frente a uma casa em ruínas. Afeiçoei-me do cofre, como quem se afeiçoa de bicho em abandono. Vê-lo assim mexeu com os meus sentimentos.
E o que eu não conseguia responder pelos fatos o fazia por meio da imaginação. O que havia no cofre? Um tesouro, respondia a cabeça do menino. E por que eu nunca tentei abrir aquela porta de ferro onde se escondiam milhões de dólares, joias, segredos cobiçados por espiões, o elixir da juventude, o cálice sagrado?
Ora, se eu não tentei! Eu tentei girar a pequena manivela com todas as combinações a meu dispor. Deu em nada, talvez porque eu não tivesse um estetoscópio, talvez porque eu não tivesse a tal sorte de principiante que ocorre com frequência em filmes.
Salvo engano, quando eu era garoto era a época da Guerra das Malvinas, tanto que havia um pequeno explosivo que recebera tal alcunha: Malvina! Quem se lembra? Mas nem mesmo mil delas seriam capazes de abrir as portas do maldito cofre. Ou eram? Eu não tentei.
Digo isto porque passou por minha cabeça arrombá-lo a dinamite. Só que nem dinamite nem pólvora eram artigos fáceis assim de se encontrar em supermercados, mesmo em períodos de festas juninas.
O curioso é que eu via o cofre de ano em ano, em vez de todos os dias. Então o que ocorrera comigo é semelhante ao que ocorre aos jovens que se enamoram durante os verões e prometem repetir a dose. Juras eternas que duram dois, três meses.
Eu morava no Rio de Janeiro, passava as férias em Maceió, muitas das vezes na rua dos Timbiras. Acabei pegando o gosto de ver se meu amigo ainda estava por lá, firme e forte, sólido como uma rocha.
Estava, sim, apesar do mato em volta da velha casa, que ganhara má fama como antro de bandidos, viciados, maconheiros, pervertidos, tatuados, mariposas de purulentas cicatrizes, ninho de cobras, de ratos, de animais peçonhentos, de entulho sobre entulho.
Somente o cofre e a fachada com os tijolos à mostra continuavam teimosamente de pé. É certo que aqui e ali um bom olho perceberia sinais de corrosão, podres de ferrugem. Era o tempo fazendo seu serviço.
Quando mais velho voltei à rua dos Timbiras, já estava na fase dos cigarros, isto é, quando se pensa que fumar nos faz parecer mais maduros. Reparei que o velho cofre fora finalmente defenestrado. Não havia mais nem sombra dele. Doeu-me, confesso. Entretanto, era tolice espalhar aos quatro ventos a dor da perda por um objeto que nem meu era. Guardei a dor a sete chaves.
Cá entre nós, faz muito tempo que não vou a Maceió. Se a cidade não afundar desta vez, irei até a rua dos Timbiras jogar uma flor na velha casa onde meu tio Paulo morou. De todos os irmãos, apenas a minha mãe está de pé. Então, irei fazer um minuto de silêncio à memória do velho cofre, o velho Onofre, que agora é leve, levíssimo, levíssimo, suspenso no ar como as asas de um pássaro sob o céu azul de um dia de sol.
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.