Por Xico Sá, El País –
O Brasil mantém seu histórico de rupturas democráticas a todo custo. Dias temerários virão
O Brasil desconhece o Brasil, uma certa Buenos Aires tampouco sabe o que se passa na periferia da capital argentina, aqui tiro uma buena onda com o amigo Washington Cucurto, meu escritor portenho contemporâneo predileto, mais para a cumbia do que para o tango, mais para a linguagem da rua e de los perros callejeros, digo, os vira-latas, do que para os cães de madame.
O cara, em termos de linguagem, está mais para as doideiras do Maradona e do Carlito Tévez do que para as estatísticas vitoriosas do Messi. Um portenho de uma Buenos Aires periférica, longe da velha ideia europeia que compramos como fetiche borgiano e metalinguístico de los hermanos.
Encontrei com o Cucurto, ainda nesse longo dia que narraremos adiante, vestido em uma camiseta vintage do Sport Club do Recife, no café da manhã —no seu país ele é torcedor do Independiente— e logo o comuniquei que o seu novo time em Pernambuco perdera na noite anterior para o Santa Cruz. Uma moça bonita, conhecedora da sua obra, me confessou: “Culpa minha, sou rubro-negra mais que tudo nessa vida”.
Cucurto, autor do genial Cosa de negros , entre outros livros, esteve aqui com a gente para participar do Clisertão, um congresso literário que acontece anualmente em Petrolina. Fez uma mesa de bate-papo genial com o escritor Marcelino Freire, mediada pela professora de literatura Paula Santana, sobre o lugar da fala, o batismo das coisas e travessias culturais.
É golpe ou não é?
No que agora indagamos, todo mundo junto, com o auxílio genial de outro nordestino que se achega, falo do paraibano Bráulio Tavares (Campina Grande), um cara que consegue nos contar de tudo nesta noite. Das suas traduções do romance noir de Raymond Chandler —meu autor predileto— aos enredos dos cordéis clássicos e às parcerias com Lenine, nosso amigo comum de comunismos d’antanho.
Agorinha mesmo na beira do São Francisco, o grande rio da unidade nacional brasileira, tomando uma cerva depois de atravessar de Petrolina a Juazeiro, a grande dúvida é uma só: como nomear o que está acontecendo no país. Pelos meus 30 e tantos anos de jornalismo e de traumas históricos, chamo declaradamente de golpe. Que me desculpem, quem sabe não passo de um paranoico benjaminiano.
Não consigo encontrar os atenuantes semânticos, tampouco eufemismos que justifiquem alguma ideia de processo democrático. A maioria dos amigos me acompanham neste batismo de fogo; outros, educadamente, mesmo trabalhando em fábricas de salsicha, dizem que não é bem assim etc.
Creio, e nisso não vejo nenhuma lenda do Curupira, que a ordem democrática foi quebrada pelo tripé tendencioso constituído, sem se ligar na Constituição, por:
1) Avexamentos de juízes de primeiras instâncias e pela demora exagerada dos ministros das instâncias derradeiras, vulgo STF…
Jamais esquecerei o dia em que um repórter entrou de Curitiba, meio sem saber o que tinha de fato nas mãos, para ler o relatório de um grampo fornecido pelo juiz Morosobre uma conversa de Lula/Dilma. O grampo ao vivo. O grampo sessão da tarde. O primeiro grampo ao vivo da história da TV brasileira. No justo momento em que havia um certo esmorecimento da direitona… Falo do ritmo do noticiário bipolar que temos vivido.
2) Repare no relato de uma mídia que deixou tudo límpido nos seus editoriais clamorosos e repletos de mesóclises… E, óbvio ululante, pelo Cunha delinquente-morda Câmara, o grifo é do procurador-geral da República, que comandou todo circo de horrores.
As mesóclises, como todo beletrismo —marca das cartas e poemas do próprio Temer— denunciam, amigo Lacan, a repetição da linguagem golpista. Dar-te-ei… Os editoriais e o vice que versa falavam a mesma língua e tramavam a mesma redundante trama. Só a linguagem denuncia e escancara os sentidos. Lacan vale por mil Janôs ou esperas dos Godôs do STF que deixaram o impeachment chegar antes de qualquer crime de responsabilidade da presidenta. Isso é um escândalo? Nada. É apenas o óbvio ignorado.
3) A mídia dos grandes veículos brasileiros chegou tão longe na sua narrativa de tirar Dilma, mulher, do seu posto, que não pode mais voltar atrás. Todo mundo avançou muitas casas, negociatas foram feitas, os patinhos quem-quéns da Fiesp, nada bossa nova, se instalaram de vez na paisagem, o golpe foi dado como consumado. O Brasil mantém seu histórico de rupturas democráticas a todo custo. Dias temerários virão.
Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de “Os Machões dançaram –crônicas de amor & sexo em tempos de homens vacilões” (editora Record), entre outros livros. Na tv, é comentarista do “Papo de Segunda” (canal GNT).