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Imunização irregular contra a covid-19 é novo aspecto da desigualdade entre países desenvolvidos e em desenvolvimento
Por Carla Lencastre
Os Estados Unidos estão vacinando jovens de 16 anos contra a covid-19. Já no Brasil o calendário de imunização avança a passos vagarosos e ainda está em torno de pessoas de 60 anos e grupos prioritários. Paralelamente, começam a surgir relatos de brasileiros, e de moradores de outros países da América Latina, viajando para fazer turismo da vacina nos EUA, depois de cumprir quarentena de 14 dias no México. Enquanto isso, a ideia de passaportes para vacinados ganha força nos países desenvolvidos.
Nos últimos dias, a Comissão Europeia anunciou que pretende receber americanos imunizados a partir de meados do ano, no verão do Hemisfério Norte. Países em diferentes continentes, inclusive na Europa, aceitam desde já, sem necessidade de quarentena ou teste, vacinados de determinados lugares. Com a União Europeia perto de fechar um acordo com a Pfizer para compra de 1,8 bilhão de doses até 2023, no mês de abril ficou cada vez mais claro que falar de vacina contra covid-19 é falar também de desigualdade.
Ninguém aguenta mais a situação atual, mas sempre é bom lembrar que vacina é estratégia de imunização coletiva, não individual. Ter dinheiro para fazer as malas e furar a fila não resolve o problema mundial de saúde pública. A Organização Mundial de Saúde já disse que, devido à escassez global de imunizantes, não apoia vacinação de turistas antes que a população mais velha e os trabalhadores na linha de frente da área de saúde dos países mais pobres tenham sido imunizados. Isso parece uma realidade ainda distante, porém não impede que a desigualdade global comece a alimentar o turismo da vacina, segregando quem não tem acesso ao imunizante. O polêmico modelo de negócio suscita questões éticas, mas há entusiastas, ávidos pela recuperação do setor de viagens internacionais, o mais afetado mundialmente pela pandemia.
Setor de viagens perdeu mais de 62 milhões de empregos em 2020
Como não poderia ser diferente, viagens internacionais foram o foco do fórum global do Conselho Mundial de Viagens e Turismo (WTTC na sigla em inglês), o primeiro grande evento do setor de viagens e turismo durante a pandemia. Na última semana de abril, a cúpula mundial foi realizada parte virtualmente e parte presencialmente em Cancún, no México. Durante o evento, o WTTC divulgou que o setor perdeu US$ 4,5 trilhões e mais de 62 milhões de empregos ao longo de 2020. Antes da pandemia viagens e turismo respondiam por 25% dos novos empregos diretos e indiretos em todo o mundo e 10,4% do PIB mundial. Com o avanço da vacinação o conselho espera que as viagens internacionais sejam retomadas em meados deste ano. Se isso acontecer, a contribuição do setor para o PIB global em 2021 poderia aumentar em quase 50%, segundo estimativa do próprio WTTC.
A professora e pesquisadora Mariana Aldrigui, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP), destaca que aos poucos novos corredores de viagem serão criados para os vacinados: “Há casos em que as bolhas de viagem incluirão apenas pessoas vacinadas. Pode ser que a elite brasileira, que se verá alvo de um banimento internacional, decida fazer algum tipo de pressão pró-saúde. Mas minha tendência é acreditar na compra de pacotes para turismo de vacina”.
Em meados de abril as Ilhas Maldivas, arquipélago do Oceano Índico sempre associado ao clichê paradisíaco, anunciaram que vacinariam turistas. Mas, ainda que a declaração tenha sido feita pelo ministro do Turismo, Abdulla Mausoom, ao canal de notícias CNBC, nada indica que isso vá acontecer nos próximos meses. Até porque, segundo o próprio ministro, metade da população adulta da nação insular ainda não foi imunizada. Além disso, as Maldivas não produzem vacina. Na realidade, até agora o país sequer comprou imunizantes. As doses usadas para vacinar os moradores das ilhas foram doadas pela China e pela Índia.
As Maldivas não terão turismo de vacina nos próximos meses, mas estão com fronteiras abertas desde o ano passado, sem exigência de quarentena. O turismo representa cerca de um terço do PIB local. O arquipélago praticamente não tem turismo doméstico e é totalmente dependente de visitantes internacionais. Desde o segundo semestre de 2020 que as redes sociais andam repletas de fotos de brasileiros em bangalôs sobre as águas azul-turquesa.
Brasileiros com o visto em dia (os consulados no Brasil ainda não reabriram), que podem pagar por 14 dias de quarentena no México e sem medo de se contaminar na viagem ou na temporada mexicana não estão esperando o verão americano para se vacinar nos EUA. Nem moradores de outros países da América Latina onde a vacinação também está atrasada. Afinal, alguns estados americanos exigem prova de residência para vacinar, mas a maioria, não.
O jornal USA Today relatou que latino-americanos chegam aos Estados Unidos tanto em voos comerciais quanto em aviões fretados, principalmente a partir do México. Segundo o jornal, a lista de turistas de vacinas inclui celebridades, executivos, políticos e até um time inteiro de futebol, todos provenientes da América Latina. Pacotes para vacinação nos EUA também já foram notícia em países mais distantes, como Índia, hoje epicentro da pandemia. E Rússia, que ainda não teve sua vacina Sputnik V aprovada pela UE nem pela Anvisa, e Cuba, que produz a Soberana 2, anunciaram que pretendem oficializar o turismo da vacina.