Um ano sem MinC: os impactos do desmonte bolsonarista na Cultura

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Por André Cintra, do Vermelho, compartilhado de Jornal GGN – 

Em entrevista, Celio Turino e João Brant, ex-gestores do Ministério da Cultura, analisam os impactos da extinção do MinC e do desmonte do setor cultural

Celio Turino e João Brant, ex-gestores do MinC, denunciam a política de “destruição” do governo Bolsonaro

Se estivesse vivo, o Ministério da Cultura (MinC) completaria 35 anos em 2020. Sua certidão de nascimento, o Decreto Nº 91.144, é simbólico: o ex-presidente José Sarney (PMDB) criou a pasta em 15 de março de 1985, dia inaugural de seu governo e da Nova República. O MinC foi um dos primeiros frutos – um filho legítimo e emblemático – da redemocratização do País.

Já seu atestado de óbito, assinado há um ano, atende pelo nome de Medida Provisória Nº 870. Em 1º de janeiro de 2019, poucas horas depois de tomar posse na Presidência, Jair Bolsonaro rebaixou o status administrativo da Cultura – de ministério para secretaria especial – e subordinou suas funções ao Ministério da Cidadania. Em novembro, um novo retrocesso: a pasta foi transferida para o Ministério do Turismo.

Para analisar os impactos da extinção do MinC e do desmonte do setor, o Vermelho ouviu dois gestores que participaram do período de maior expressão do ministério – os 13 anos sob os governos Lula e Dilma. O historiador e gestor de políticas públicas Celio Turino comandou a Secretaria da Cidadania Cultural entre 2004 a 2010, idealizando os programas Cultura Viva e Pontos de Cultura. Já o pesquisador João Brant, militante de cultura e de comunicação, foi secretário executivo do MinC (2015-2016). Confira:




Vermelho: Antes de Jair Bolsonaro, houve Michel Temer no caminho da Cultura. Em que medida o atual governo já encontrou um MinC diferente daquele deixado por Lula/Dilma?

Celio Turino: É preciso compreender o impacto das políticas culturais inauguradas sob o governo Lula, com os ministros Gilberto Gil e, depois, Juca Ferreira. Os Pontos de Cultura alcançaram 1.100 municípios, com 3.500 pontos – a maioria em favelas, aldeias indígenas, assentamentos rurais, periferias de grandes cidades a pequenos municípios, atuando desde o campo da cultura popular e de periferia à arte de vanguarda e ao software livre. Essa política pública se disseminou pela América Latina, com reconhecimento de diversos governos e até mesmo do papa Francisco. Hoje, há Pontos de Cultura em 17 países. Houve a consolidação de uma indústria audiovisual no País, gerando centenas de milhares de empregos. No campo da Identidade e Diversidade Cultural, o Brasil foi um dos principais artífices da política de diversidade da Unesco. Conseguimos assegurar ao menos uma biblioteca em cada município, incluindo os rincões mais afastados. Foi criado o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). Enfim, as muitas iniciativas resultaram em um conjunto de políticas inovadoras. Lamentavelmente, a partir de 2011, houve uma descontinuidade dessas políticas, com incompreensões e mesmo desmonte – não na intensidade atual, mas que provocaram uma contínua perda de espaço. Com o governo Temer, houve a tentativa e o recuo na extinção do Ministério da Cultura. Seguiu-se uma gestão sem grandes formulações ou ações merecedoras de destaque, mas também sem grandes destruições – “medíocre” seria a definição mais apropriada. Com o governo Bolsonaro, isso muda, havendo uma política aberta de ódio e destruição à cultura, às artes e ao pensamento.

João Brant: Desde o governo Temer, o ministério já vinha em um processo de grande enfraquecimento. A “PEC do Teto dos Gastos” (Emenda Constitucional 95, sancionada em 2016) comprimiu muito o espaço dos ministérios que dependem de orçamento discricionário, como a Cultura, que não tem despesas definidas como obrigatórias. Em relação às políticas públicas, houve a desmontagem do programa Cultura Viva, uma ação que foi assumida pelo (ex-ministro) Sérgio de Sá Leitão numa entrevista. O audiovisual foi marcado por uma política errada da direção da Ancine (Agência Nacional do Cinema), com o Christian de Castro e seu discurso populista, de agrado ao TCU (Tribunal de Contas da União). Isso prejudicou muito as condições de realização da política do audiovisual. Mas a decisão do Bolsonaro de acabar com o Ministério da Cultura e a forma como ele indicou seus gestores revelam um passo realmente adiante em relação ao que era o governo Temer.

Vermelho: Por que é importante que a Cultura tenha status ministerial?

Celio Turino: Cultura é o que define uma nação. Assim como há as fronteiras físicas de um pais – que devem defendidas pelas Forças Armadas e pelo Ministério da Defesa –, há a fronteira imaterial, a alma dos povos, suas formas de ser, pensar e agir. A defesa dessa fronteira intangível cabe ao Ministério da Cultura. Desguarnecê-la equivale a crime de lesa-pátria. Na América Latina, até o ano passado, apenas dois países não tinham ministérios da Cultura: o Panamá contava com um instituto, e a Argentina, com uma secretaria, em função das políticas neoliberais de Mauricio Macri. Quando da vitória da esquerda nesses dois países, a primeira medida dos novos presidentes foi a criação dos respectivos ministérios da Cultura. No Panamá, país com menos de 5 milhões de habitantes, houve a elevação do orçamento em mais de sete vezes – de US$ 40 milhões para US$ 300 milhões. Hoje, com o governo Bolsonaro, o Brasil é o único país da América Latina a não contar com um ministério da Cultura.

João Brant: A primeira questão é a perda de relevância da Cultura. O rebaixamento de status do MinC carrega, obviamente, um rebaixamento da importância relativa da Cultura perante as outras áreas. Se não fosse para gerar isso, não tinha porque a mudança acontecer, já que a economia de recursos é mínima. Esse rebaixamento impacta na dificuldade de acesso direto às áreas centrais do governo (Presidência da República e Ministério da Economia), bem como ao Congresso Nacional. Impacta também na perda de lugar de fala pública do responsável pela pasta. O segundo prejuízo vem na forma de perda de capacidade administrativa. Embora a economia em termos de pessoal seja mínima – se considerado o orçamento geral –, ela afeta a capacidade de o ministério processar seus convênios e termos de cooperação e de fomento. Nesse quadro, a Cultura tem de competir por espaço e prioridade internamente ao ministério. A terceira é a perda de autonomia orçamentária. Além da batalha no âmbito do Ministério da Economia e do Congresso Nacional, a Cultura tem de manter uma batalha permanente dentro do ministério – antes o da Cidadania, agora o do Turismo. Considerando que o teto de gastos públicos rebaixa consideravelmente os recursos para a Cultura, a secretaria especial teria de lutar muito para a pasta poder efetivar políticas públicas que vão além de abrir e fechar seus equipamentos.

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Vermelho: Passado um ano do governo Bolsonaro, como estão as políticas culturais no País? Quais as perspectivas para 2020 e o restante do mandato de Bolsonaro?

Celio Turino: Declarações grotescas, censura à livre manifestação artística, insultos e ofensas a artistas, pensadores e grupos étnicos, ódio e destruição à Cultura. Além disso, não houve nada que mereça destaque. O que esperar? Aprofundamento do ódio e da destruição.

João Brant: O quadro já é trágico. Em junho passado, ao participar de um debate sobre a questão da Cultura, eu disse: “Tudo indica que a coisa está ruim, mas pode piorar bastante”. E o segundo semestre de 2019 mostrou que havia muito espaço para piorar. Fazíamos uma certa divisão entre políticas de investimento e fomento, de um lado, e políticas de manutenção de espaços e de atuação institucional do ministério, de outro. As políticas que dependem de fomento já estavam às traças, por falta de recursos. Mas ainda não tínhamos visto o peso do enfraquecimento do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), do Ibram, da Fundação Biblioteca Nacional, da Fundação Cultural Palmares, etc. Apesar dos equívocos na condução desses espaços, não havia uma deterioração dessas políticas que são (digamos assim) mais permanentes do ministério. Agora, vemos uma combinação entre a negligência do Bolsonaro com a Cultura e a postura de seus gestores – que não estava tão clara em meados do ano passado, mas já está afetando os espaços institucionais. A indicação desses gestores – como o Roberto Alvim (para secretário especial da Cultura) e o Sérgio Camargo (para a presidência da Fundação Palmares) – representa a destruição no discurso e na prática. Eles chegam para destruir uma perspectiva de política cultural. O caso da Ancine é mais preocupante por se tratar do único espaço que ainda tem recursos significativos para a realização de políticas, graças à arrecadação da Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica). Essa política vai afetar mais fortemente o audiovisual neste ano. Espero estar errado, mas talvez vejamos a destruição do pouco que ainda resta de política cultural no Brasil. Vamos ver, por exemplo, o sufocamento do Ipham e da política institucional de patrimônio, da Biblioteca Nacional, dos diferentes ambientes e espaços de atuação do ministério. Todos os fatos apontam nessa direção, e as perspectivas para 2020 são muito negativas.

Vermelho: Como reagir?

Celio Turino: Com muita criatividade, arte e afeto, muita proximidade com o povo. E com muita coragem e determinação para ir às ruas e exigir a anulação das eleições de 2018, por fraudadas que foram, seja pela manipulação golpista de instituições de Estado e pela desinformação promovida pela mídia corporativa; seja pelos abusos do poder econômico, pela disseminação da cultura do ódio e fake news pelas redes sociais, agravada pela submissão a interesses de potências imperialistas; seja pela entrega do Brasil a um projeto neocolonial, pelos incontáveis crimes de improbidade cometidos pelo presidente e assessores e pela vinculação com o submundo do crime. Há muitos motivos para exigir o fim deste desgoverno de traição nacional. No Chile, nossos irmãos estão mostrando o caminho. Lá, nas manifestações pelo “Fora, Piñera”, os artistas e movimentos de cultura viva comunitária estão na vanguarda das manifestações – sempre com muita arte e ações performáticas, que agregam milhares de pessoas. É como acontece com o novo brado feminista, que alcança o mundo: “El violador eres tú” (O estuprador é você). Tenho muitos amigos por lá, artistas, palhaços (uma delas foi assassinada pela repressão policial – ou “pacos”, como eles chamam os carabineros), teatreros, músicos, animadores culturais… Diariamente, eles desafiam a repressão violenta com novas formas de protesto, que têm por base a arte e a cultura. O Chile está mostrando o caminho e cabe aos demais povos da América do Sul apoiá-los e acompanhar seu exemplo sempre que houver um governo opressor. Fora esse caminho, só vejo tristeza, humilhação e destruição. Já basta o tempo de tristeza no Brasil!

João Brant: Se apenas a área da Cultura tivesse uma política extremamente negativa e o restante do governo fosse razoável, poderíamos ver hoje um ambiente central de reação na Cultura. Mas não é isso que está acontecendo. O governo Bolsonaro combina um ultraliberalismo econômico, um ultraconservadorismo moral e comportamental, além da entrega total das riquezas nacionais a uma pequena parte da sociedade. Estamos lidando com uma minoria – mas é uma minoria organizada contra uma maioria dispersa. A Cultura simplesmente repete esse padrão. A reação depende, antes de tudo, de uma organização daqueles que foram diretamente afetados. Pode ocorrer reação efetiva diante das perdas em questões estratégicas, como o enfraquecimento do Fundo Setorial do Audiovisual e as ações mais graves no âmbito do Iphan e das fundações. Fora disso, pior: vamos ver uma destruição completa. Daria para reagir melhor, com mais força, num ambiente político em que essas questões pudessem ser sentidas de forma especialmente graves. Quando você não percebe os efeitos de imediato, é muito difícil haver uma reação que faça a panela transbordar. A não ser que isso vá se acumulando, como ocorreu no Chile recentemente.

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