Por Claudio Lovato Filho, jornalista e escritor, publicado no Site FutRio –
Um pouco de ficção sobre um tema bem real e que – por diversas razões, nem todas elogiáveis – se eterniza no futebol. Escrevi este pequeno conto há alguns anos para a minha coluna “Futebol ao Pé da Letra”, que o Rogério Nunes e sua equipe do Futrio Net levavam ao ar com o talento e a bravura que sempre caracterizaram o trabalho deles. A ilustração é do amigo e parceirão Francisco Milhorança.
Um ato de amor e loucura
Cláudio Lovato Filho e Francisco Milhorança nos presenteiam com mais esta obra-prima
Você foi orientado por gente experiente, foi treinado, fez quatro anos de faculdade, gramou nas redações no começo da carreira, acumulou experiência, aprendeu com os cobrões a se controlar, a manter a imparcialidade, a ser profissional, e sempre se segurou, sempre foi fiel aos fatos, teve bom senso e lucidez e, por isso, conquistou uma reputação, e que bom gozar de uma reputação, quantas portas se abrem para quem tem uma reputação, é ou não é? Claro, há os que desconfiam e há os que têm certeza sobre o seu time do coração. Mas é tudo chute, especulação, leviandade, você sabe disso, porque nunca baixou a guarda, nunca deu bandeira. Desde os tempos de foca você tentou honestamente, bravamente, fazer com que o seu grande amor passasse a ser o futebol em vez do seu clube. E estava atingindo seu objetivo, sim, estava indo bem, havia muito tempo. Até hoje. Até daqui a pouco. Até o jornal chegar às bancas.
É de manhã cedo, na verdade ainda madrugada, e você já está acordado (aliás, você não dormiu, não pregou o olho nem por dez segundos). Você está ciente de que o telefone vai começar a tocar em pouco tempo. Primeiro, os colegas mais próximos e os amigos; depois, os conhecidos e os amigos-da-onça; e então, o pessoal da família: seu irmão, seu tio, que tomou conta de você depois que seu pai, irmão dele, morreu, seu primo do interior, aquele que sempre foi mais do que um irmão. E todos vão perguntar a mesma coisa, com palavras e inflexões diferentes: “O que é que deu em você?”
Fossem outros mil jornalistas em seu lugar, e ninguém levaria a coisa a sério. No máximo, seriam sorrisos de confirmação distribuídos e recolhidos nas esquinas, ou simplesmente a completa indiferença. Mas com você é diferente. Ao longo de mais de 20 anos de profissão você cultivou a imagem de homem de imprensa reto, justo, sem paixão clubística. Um sujeito orgulhoso de seu equilíbrio. O melhor símbolo, a personificação mais fiel, mais pronta e acabada da tal “imparcialidade jornalística”. Mas agora isso tudo se foi. E você não faz a menor ideia do que virá depois. Não tem noção. Você se olha no espelho do banheiro, com o dia amanhecendo lá fora, e pergunta-se, pela primeira vez na vida, se a imagem refletida é sua mesmo. Você fica em dúvida se há unidade entre você e a figura no espelho. Pelo menos neste momento é assim.
Você relembra mais uma vez – e isso parece ser tão importante quanto o ar que agora entra em seus pulmões – que, sim, sim, pensou muito bem antes de fazer o que fez. Sim, você reafirma para si mesmo que teve muitos motivos para fazer o que fez: seu clube nas mãos de criminosos (literalmente), o time pronto para o rebaixamento, em uma viagem talvez sem volta (pelo menos nos próximos três ou quatro anos, quem sabe mais), a torcida sendo tratada como lixo… Você simplesmente decidiu que havia chegado a hora. A sua hora. E que fazer aquilo, assumir a sua paixão – mais que isso, a sua devoção, iniciada lá na infância -, era, de uma forma que só você entendia, essencial. E você o fez. E um texto bem-escrito, sim, mas sobretudo honesto e emocionado, em sua coluna de um terço de página.
Está feito, você pensa em frente ao espelho do banheiro.
E então você consegue ver um sorriso brotar no rosto refletido à sua frente, e você volta para a cama, agora sentindo-se um, único, inteiro. Você é invadido por um sentimento de completude como nunca antes em sua vida. Você faz contato consigo mesmo, encontra seu centro e, de repente, tem a certeza de que isso vai durar para sempre, e de que ninguém vai conseguir tirar isso de você.