E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista ainda está com o bloco na rua. César volta a desfilar com Bucco, o folião que, de inconformado se conforma com um bloco que passa por perto e se alegra com o pensamento que parece uma coisa à toa, mas como o faz voar num bloco para chamar de seu.
“(Segunda história de Bucco). É praticamente uma tradição. Depois de muito sonho e desarranjo, Bucco finalmente se dá conta de que no carnaval não sairá da cidade. Daí então segue o muro de lamentações: ele se enfurece, bate as portas de casa, lança impropérios, inveja os Capellis por eles terem realizado mais uma vez uma viagem de carnaval para a serra ou para praia sem maiores sobressaltos.
Para que as crianças não percebam as lágrimas que verte, Bucco dá uma desculpa qualquer e se tranca no quarto ou no banheiro. Permanecendo isolado por algum tempo, longe das demandas familiares, das demandas por atenção e afeto dos pequenos, tem a vã esperança de que alguma boa idéia lhe venha como o resultado do esforço do seu grande matutar. Afinal, os Buccos são famosos por sua engenhosa capacidade de adaptação quando estão diante de difíceis situações.
Desta vez não lhe veio nada, entretanto. Bucco estava vazio de idéias, deserto como aquela tarde de domingo em cidade longe do mar. Mas ouviu um ruído, alguma coisa ao longe, algo como o som de uma bateria de escola de samba. Não era possível? Era. Bucco não conteve o entusiasmo. Pegou a mulher e as crianças, que ficaram meio sem entender o que se sucedia.
Desceram as escadas às carreiras. Chegaram todos esbaforidos e suados ao olho da rua, a ponto de ver o cortejo se aproximar. Era a bem da verdade coisa pequena, ínfima até, mas não era de se jogar fora, ainda mais para quem estava sem absolutamente para fazer.
Entraram todos no bloco. Cantaram a plenos pulmões as velhas marchinhas de carnaval que até as crianças sabiam de cor. Por alguns instantes, a alegria estava estampada no rosto de Bucco, que suava em êxtase. Nem ele nem ninguém pareciam se importar com o calor, que depois se hidratassem.
As crianças de quando em quando se agachavam para catar o confete que tinha sido jogado no chão por outros foliões. A mulher de Bucco, que tinha bons ouvidos e maus bofes, não espinafrou o som da banda como ela costumava fazer quando embarcava nos arroubos do marido. Ao vivo é sempre mais difícil, pensava ela, enquanto tentava acompanhar as evoluções que Bucco tirava da cabeça e levava aos pés, coisa muito sem pé nem cabeça para todos se houvesse alguém que se importasse.
O bloco descia a rua. Era simples e estranhamente organizado. Havia um carro alegórico do qual se destacava um coelho saindo da cartola. Muito provavelmente, salvo uma explicação mirabolante e carnavalesca, o enredo versava sobre a incrível capacidade de realização de nossos populares, capazes de tirar cerveja de pedras quando se trata de alegria.
A porta-bandeira girava sozinha, não havia a sentinela do mestre-sala. As baianas evoluíam graciosamente à maneira das baianas, o que talvez levasse água para o monjolo de Bucco, que afirmava que alegria é a prova dos nove, é o que realmente importa. Logo atrás vinha a bateria, com cerca de vinte componentes, sendo capitaneada por um mestre de bateria – mais uma vez, prova de uma estrutura já sedimentada.
O baticum estava perfeito, nota dez. E a Kombi branca com os dois ou três intérpretes da Unidos da Buccanera, escola que ainda será tradicional um dia. E, atraídos como bichos de luz, os Buccos, felizes foliões.
De uma agremiação como a escola de samba, diz-se ou costumava-se dizer que ela se estrutura como uma espécie de cometa: os fundadores formam o núcleo duro, intransferível da escola; os demais participantes formam o rabo do cometa, tendo obviamente muita importância mas não a relevância histórica e conseqüente compromisso com a sobrevivência da escola.
De que livro Bucco tirou isso? Não era exatamente no que ele estava pensando quando do nada resolveu seguir a escola. Ele seguia o enredo do seu coração. O fato é que ele tinha ficado feliz e por alguns instantes não lhe veio à tona o arraigado ressentimento para com todos aqueles Capellis ou aprendizes de Capellis que estavam aproveitando como nunca o feriadão enquanto ele estava irremediavelmente aferroado a um cotidiano sem expectativas, ainda mais no carnaval.
Mas no próximo ano, no próximo ano, ele venceria o concurso para o samba-enredo da Buccaneras, tornando-se reconhecida e merecidamente um compositor popular. Já estava pronto para as entrevistas e para os autógrafos. Só Deus sabe o quanto ele percorreu para chegar até ali. Não foi fácil, foi necessário muito sacrifício e resignação. Mas valeu a pena.”
Foto de Washington Luiz de Araújo sobre um bloco em Paquetá formado para o aniversário do amigo Rafael. Não, o de óculos escuro não é Bucco, mas sim Maurinho, Mauro Célio, umpersonagem real, amigo do blog e do cronista Cícero César. Pensando bem, ele até poderia o Bucco.
Link da crônica anterior sobre Bucco: https://bemblogado.com.br/site/a-vida-num-dia-de-lantejoulas/
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970