Um capitão-do-mato a serviço de outro capitão

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Meu sobrinho-primo, Carlos Maynard, hoje nas altaneiras, resumiu muito bem as palavras do distópico-mau-caráter Sergio Camargo num tweet da Fundação Palmares. O decrépito secretário, mais uma vez, entende a carne barata — da qual mercadeja — como fruto insofismável de uma violência que acompanha seus ancestrais empurrados que foram para os distantes morros, desde a colina da Carioca, onde serviçais continuaram a emprestar seus corpos para que a Rio Branco se tornasse mais branca num vistoso boulevard.

Por Virgilio Almansur, compartilhado de Construir Resistência




O tweet é impressionante! Carregou elogios da banda podre que elevou um miliciano propagador de assassinos e torturadores. A lavra sintetiza nossa realidade, onde os capitães-do-mato têm ampla desenvoltura e caminham paripasso às invectivas e vitupérios típicos dessa gente malsinada que insiste na degradação.

Quase secretário de governo, um desgoverno militar e para-militar da pior safra, repleto de milicianos — muitos dos escritórios criminosos como o de Adriano —, o presidente da fundação, com vistas a apontar as barbaridades desde Palmares (aqui, uma representação cultural), classifica o assassinato brutal de Moïse Kabagambe como a de um vagabundo. Sim.! Textualmente disse: “… vagabundo morto por vagabundos”, onde “a cor da pele nada teve a ver” com a brutalidade apresentada a cores num quiosque à beira mar…

O plecaro presidente da fundação compõe uma ode negativista grave. Cumpre roteiro raivoso! Incrementa as palmas que o antigo candidato, seu chefe, recebeu num clube carioca ao descrever seu racismo abjeto ao tomar e tornar suas “vítimas”, pesadas em arroba, como vítimas que Elias Canetti perceberia em Auto-de-Fé, num certo bruxuleio das identidades pré-instalação do nazismo.

Essa manifestação de Camargo, prenuncia o desmonte ontogenético, algo estranho ao ser, verdade, que antecipa uma virada estética cujas palavras nos conduzem ao fenecimento da arte, do próprio homem e sua expressão numa camada de desesperos (digo-a, camada, visto que são variados os desesperos num discurso que acena à desesperança — que impõe uma visada ao componente vagabundo entre vagabundos!). Aqui, a ética é desprezada! Nem se vê possibilidades da aplicação filosófica, algo improdutivo num desgoverno sem amigos do saber…

Há que se perguntar: chegou já a Lei Áurea? No alvorecer de 2019, fomos percebendo a que atraso chegamos… Loas no Condomínio da Barra Pesadíssima e uma alegria de norte a sul a trazer, consciente ou não, a satisfação de que nossos irmãos devam continuar na senzala. A isso, um contribuinte como Camargo, inicia sua fala delimitando quadrados — que a elite atrasadíssima requer: “… Moïse andava e negociava com pessoas que não prestam…”

Impressionante essa delimitação. Camargo entrega de bandeja uma espécie de barbárie, comutada nessa logística aplicada aqui desde os anos 1700 e 1800. Um capitão-do-mato esmerado. Prestador de serviços para honrar o que nos marca desde 2013, com a inclusão penal do instituto da delação fácil.

O recado é dado: “… Em tese, foi um vagabundo morto por vagabundos mais fortes”. Impressiona a rasteirice calhorda, marca dessa escumalha militar-civil-empresarial que ora retorna esculpindo capitanias quase hereditárias e a oprimir-nos pela lei das arminhas que sufocam os corruptos marrequeados de um outro escritório do crime: aquele da 13a.VF, recepcionada no mundo das ilegalidades..

Mas o meliante não está sossegado. Também não está só! Precisa adjetivar seu composto substantivo vazio: “… A cor da pele não teve nada a ver com o brutal assassinato”. A intencionalidade que percorre as veias desse ignominioso serviçal, carrega uma angústia. Eu deveria parar por aqui… Mas não cederei às prerrogativas que me silenciam em prol de uma intransitividade que cultuo, também, em prol da profissão que requer meu distanciamento. Mas Camargo quer sua alforria, não como de origem. Ele a quer sob o manto das benesses que viu surgirem pela dedicação a uma causa que, ao negar, o coloca junto aos próceres desse poder podre que ajudamos eleger. Não há exemplo maior — e melhor! — para entrarmos no âmago dessa vertente humana que, em tempos modernos, fizeram do outro o dínamo negreiro a empurrar navios por tantas gerações…

“A carne mais barata do mercado é a carne negra”. Esta música composta por Seu Jorge, Marcelo Yuca e Wilson Capellette, que ganhou espaço na Música Popular Brasileira na voz de Elza Soares, enaltece as qualidades, por muitos ignorada, da população negra na construção deste país. Vale a pena reproduzí-la, deixando aqui minha homenagem a Elza Soares:
“A carne mais barata do mercado
É a carne negra
Tá ligado que não é fácil, né, mano?
Se liga aí
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
Só-só cego não vê
Que vai de graça pro presídio
E para debaixo do plástico
E vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquíatricos
A carne mais barata do mercado é a carne negra
Dizem por aí
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
Que fez e faz história
Segurando esse país no braço, meu irmão
O cabra que não se sente revoltado
Porque o revólver já está engatilhado
E o vingador eleito
Mas muito bem intencionado
E esse país vai deixando todo mundo preto
E o cabelo esticado
Mas mesmo assim ainda guarda o direito
De algum antepassado da cor
Brigar sutilmente por respeito
Brigar bravamente por respeito
Brigar por justiça e por respeito (Pode acreditar)
De algum antepassado da cor
Brigar, brigar, brigar, brigar, brigar
Se liga aí
A carne mais barata do mercado é a carne negra
Na cara dura, só cego que não vê
A carne mais barata do mercado é a carne negra
A carne mais barata do mercado é a carne negra
Na cara dura, só cego que não vê
A carne mais barata do mercado é a carne negra
Tá, tá ligado que não é fácil, né, né mano
Negra, negra
Carne negra
É mano, pode acreditar
A carne negra”

Ainda não acabei… O Sr. Camargo também não… Ele não parou aí! A cultura que ele representa (a fundação é Fundação Cultural Palmares) carregaria, necessariamente, movimentos que deveriam impedir as degradações que assistimos impregnadas na cor… Ele conclui seu tweet arrebatadoramente: “… Foram determinantes o modo de vida indígno e o contexto de selvageria no qual (Moïse) vivia e transitava”.

Lembrei-me de um papo com uma parente há anos. Ela insistia em dizer que a “negrada” com quem ela trabalhava nunca quis estudar: “… Veja! São poucos os que querem estudar! Você não vê quase um negro em sala de aula! No máximo um ou dois…” E a assertiva estava disposta em cima de mestrados, doutorados e inúmeros pós em medicina. Quê esperar?

Mas vem de um médico, meu sobrinho-primo (ou primo-sobrinho) uma eloquente manifestação importante: “Eu trabalho no SUS há 15 anos, mais 8 estudando lá. A primeira vez que a Escola Paulista me levou na ‘favela’ do Heliópolis foi no 1º ano de Medicina, 1998. Sempre preferi trabalhar nos bairros mais carentes de serviços de saúde, em todas cidades que morei. Se o ‘contexto de selvageria no qual vivia e transitava’ e o ‘modo de vida indigno’ são determinantes: Mate-me por favor!”

Essa brilhante exposição dá a dimensão da precariedade de um sujeito alçado a uma Fundação Cultural. Mas também propicia percepções pré e inclusivas, de quem verdadeiramente trata e se vê no rol daquelas desesperanças cujas camadas nos são ofertadas. Aqui, Carlos Maynard nos dá a tensão verdadeiramente exposta no tweet bandido: o modus vivendi (frase latina que significa “modo de vida” ou “meio de viver”); é frequentemente usada para significar um arranjo ou acordo que permite que partes conflitantes coexistam em paz; na ciência, é usado para descrever estilos de vida. No entanto, o modus operandi incute algo que, nas palavras de Camargo, carrega a marca desse desgoverno: uma pulsão permanentemente tanática, opção mortífera, carregando um semblante suicida irreversível. O contexto que se apregoa é para o declínio — e no limite o desaparecimento. Indignidade e selvageria, marcas incontestes da primazia mortal!

Até onde pode chegar a maldade humana? Se livre de qualquer barreira ditada pela civilização, que vive seu mal estar nestas linhas, o que se depreende é a percepção de que a culpa não imperará! Nunca haverá culpados… Tudo vai ocorrendo sob a índole malévola que todos carregamos. Nenhuma vítima! Quê isso?! Vítima do quê? Estaremos sempre às voltas com indivíduos que nada têm (talvez um pouco de sopro sofrível, arrastado, dispneico…), frente àqueles que tudo podem transformando em mercadoria os primeiros. É a própria naturalização da miséria bem como insensibilidade ao sofrimento alheio.

A fala de Camargo nos coloca no cerne de uma não conquista: a herança escravocrata, melhor ainda (ou pior!): escravista por excelência. Daí o olhar sectário a traduzir um não-ser a Moïse e aos seus próximos. O vagabundo carrega a precisão de não-gente; somos useiros e vezeiros na acepção vagabunda quando denotamos distanciamento como coisa embalada para assim referirmos depreciativamente àquela “coisa”. Essa naturalização da miséria (discursiva e não inclusiva), neutraliza sentimentos; impede qualquer movimento empático e sufoca aprendizados geração a geração, num movimento de subhumanidade que os donos do poder exigem. O vagabundo é coisa!

A morte indiscriminada de pobres e pretos é estimulada. Camargo representa uma classe média cognitivamente comprometida, fascistóide, violenta, que aplaude extermínios… Mais: faz o serviço sujo, indecente, comprazido e cortês. Sua nução é prova do ódio assentido ao pobre! Sua outorga é manter o modelo da escravidão, negada pela proximidade ao feitor bárbaro, ao senhor de escravo banalizado historicamente e que se mantém numa outra configuração — mas carregando estética simétrica.

O alarde maroto de Sergio Camargo conclama para que não critiquemos o que e como a maioria das instituições se compuseram: a herança escravocrata! Negar Palmares é negar uma solução de continuidade que nunca chega. Esse é o trabalho de um capitão-do-mato a serviço de outro capitão; hostes montadas a sufocar quaisquer progressos… Quem é gente e quem não é…

Está aí a humilhação ao pobre! 500 anos e ainda continuamos construindo um apartheid; aquele mesmo, idêntico ainda hoje ao Sul Africano. Vi algo similar em Johanesburgo: a marca permanece! Aqui como lá, inúmeros sowetos. Pior: nós mantivemos 5 séculos atualizados nos mesmos serviços de “indignidade” promovidos pelas indígnas figuras a manter o status quo. Camargo é mais um… É um palmar quase absoluto a contribuir à escravatura doméstica sem direito a uma edícula, acenando à maior composição doméstica de escravos que advêm, na maior parte das observações, de famílias desestruturadas, gênese do serviçal a ser abatido, já que humilhado na essência, pois desprovido de família.

O ódio ao escravo é o ódio sentido pela parte escrava que carregamos nas ondulações coloridas, transpostas hoje ao pobre que queremos negar — e na infelicidade de nada fazermos para uma erradicação continuada, que nas palavras de Camargo promove o ressentimento para um abismo enorme entre classes que cobrará caríssimo num futuro não tão longínquo.

Vem de um pré-socrático, Empédocles, a noção de um ódio surdo existente para a determinação do ser. A gênese começa lá onde o ódio se realiza. Tal complexidade não caberia aqui… Mas advém do próprio vazio do ser. Sim! O ódio é realista, porém impalpável. A dificuldade em falar dele ou até constatá-lo em frases capciosas, tem origem na não arquitetura de linguagem. Depreendemos ele… O ódio, mais intuído do que descrito, aparece sob nuances erótico-amorosas.

Está nesse tweet de Camargo, uma perfídia com elementos de um ódio-invejoso. Ele não o percebe! Traz melancolia de origem, deslocada a um infeliz de antanho que percorre suas veias. É verdade: não é esse um colorido qualquer… É sanguíneo; todos carregamos. E a animosidade advinda de um olhar a um irmão de leite, está no centro dessa entourage, um drama social que permite uma agressividade deslocada e enganadora. Essa é a imagem odiada que se lhe revela num objeto perdido — e que reativa a dor da frustração primordial: uma separação de origem, a mãe. Está ali uma inveja fraterna e seu desejo escandido num repto a encobrir outros desejos. A anterioridade do ódio é mesmo patente! Surge quando o amor ainda não apareceu. Sua fonte é a recusa à exterioridade, ao mundo externo, eis que este emite estímulos que nenhum narcisista suporta. Nesse império não há lei, nem Áurea e nem amor. Triste! Muito triste!

Foto: Arquivo pessoal

Virgilio Almansur é médico, advogado e escritor.

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