Um cavaquinho seduz Carmen

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Por Claudio Bernabucci, de Roma, publicado em Carta Capital – 

O instrumento brasileiro toca na Orquestra de Piazza Vittorio, desde 2002 sucesso mundial

Piazza Vittorio é uma belíssima praça romana, a maior da cidade, ainda maior do que a Praça de São Pedro. Majestoso retângulo construído no fim do século XIX em estilo liberty no Esquilino, uma das sete colinas onde Roma nasceu nos começos do primeiro milênio antes de Cristo, recanto sempre a guardar lendas e mistérios.

Ali, no meio do jardim que enfeita a praça, ficam os restos de um antigo ninfeu romano e as ruínas de uma vila renascentista, com uma porta considerada mágica, onde se destacam símbolos esotéricos nunca decifrados.




A cercania da estação central determinou, no século passado, o destino do sítio: por um lado, maior feira ao ar livre da cidade, por outro, moradia popular e barata, primeiro amparo dos imigrados de qualquer parte do mundo, casbah da cidade eterna. Nesse contexto fascinante e multiétnico, surgiu anos atrás uma experiência cultural e social que vale a pena contar.

Tudo decorre do fato de que um músico talentoso, Mario Tronco, napolitano inteligente e simpático, decidiu morar na praça com sua família. Artista engajado e idealista, ele teve a inspiração de homenagear com sua música esse lugar intrigante, desde cedo objeto de uma autêntica paixão.

Flauta-Mágica
Músicos de todos os cantos do mundo encenam até “Flauta Mágica” de Mozart

Convencido de que “a mestiçagem representa o fenômeno musical mais significativo dos últimos séculos, como a beleza do jazz, blues ou rock-and-roll demonstram”, o mestre napolitano começou sua aventura simplesmente espalhando a notícia de que estava à procura de músicos entre os imigrados, para montar uma banda: a Orquestra de Piazza Vittorio.

O começo foi difícil, mas o entusiasmo e a coragem estavam a mil. Durante quase um ano, a bordo de uma Vespa, Mario e alguns amigos vasculharam a cidade inteira em busca de músicos exóticos e, ao mesmo tempo, filmando essa incrível odisseia artística.

De repente, foi a sorte que transformou os magros resultados da procura inicial em autêntico tesouro. Já muito apreciado no ambiente musical por sua experiência de autor na excelente banda Avion Travel (que ganhou o Festival de San Remo em 2000), Mario foi contratado para montar um grande show por uma importante empresária, que apostou cegamente no nascimento da Orquestra.

Com a possibilidade de garantir um salário a músicos talentosos, mas até então obrigados a trabalhar em pizzarias e a se desdobrar para ganhar a vida, as candidaturas se multiplicaram e finalmente o projeto tomou forma.

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A praça guarda segredos e mistérios romanos e renascentistas

“A ideia era montar um grupo não só com artistas etnicamente diversificados, mas também de âmbitos distintos: com formação clássica, ou de folk ou rock, para ter a possibilidade de frequentar e misturar com liberdade gêneros diferentes. Nos seis meses extraordinários que precederam o primeiro show”, conta Mario Tronco, “eu não podia acreditar nos meus ouvidos, durante as seleções. Trabalhando, encontrei gemas preciosíssimas”.

A primeira exibição da Orquestra, em 2002, tornou-se um enorme sucesso  de público e de crítica. A habilidade de criar um produto musical híbrido de muitas tradições, com instrumentos, idiomas e culturas dos quatro continentes, realizou o milagre de uma extraordinária fusão artística, absolutamente única e de grande beleza. (É só entrar no YouTube para se ter uma ideia.)

Desde então, a carreira da banda viveu de sucesso em sucesso: três discos gravados e centenas de concertos, até o Credo, um oratório inter-religioso apresentado ao público romano na véspera do Natal passado, em que a Orquestra sintetizou as discussões religiosas, as próprias crenças espirituais e as tradições musicais sagradas: a sufi, a gregoriana, a barroca.

A mise-en-scène de duas óperas líricas – a Flauta Mágica de Mozart e a Carmen de Bizet – revisitadas com mirabolante fantasia representou provavelmente o momento mais criativo da Orquestra.

Pôster

“Trabalhando com artistas que nem sempre sabem ler música, porque vêm do folk e tocam de ouvido”, lembra Mario, “conseguimos reinterpretar essas obras-primas da cultura europeia como se fossem contos de tradição oral.

Eu transmitia aos músicos a partitura original e ela me era devolvida com erros milagrosos, produzindo resultados inesperados de beleza musical.” Assim aconteceu o extravagante prodígio de umaFlauta Mágica (2007), em que o Papagueno entoa notas ska-reggae jamaicanas em inglês e Pamino toca e dança ritmos e percussões cubanas em castelhano.

Da mesma forma, em Carmen, que estreou em 2014, o toureiro Camilo canta em árabe e Don José (o brasileiro Evandro dos Reis) replica com cavaquinho na língua de Camões.

Em 14 anos de trabalho, a orquestra visitou 26 países, dos EUA à Rússia, da Escandinávia à Argentina (estranhamente, sem ter acolhida no Brasil). Os músicos, dependendo das peculiaridades de cada exibição, variam de 9 a 60 elementos, mas a mistura é sempre garantida: latinos, asiáticos, africanos, europeus, numa exuberante criatividade. Entre eles, também um paulista nascido na Lapa paulistana, mas, como milhões de outros, de origem nordestina.

“Acredito que, depois da minha esposa, Evandro é o ser humano que eu mais cortejei na minha vida”, relata Mario, com cara feliz. Depois de vários desencontros entre os dois, foi um acaso – a imprevista saída dos músicos indianos – que permitiu o nascimento de uma formidável parceria artística. Dali se forjou uma amizade que até hoje faz ambos felizes e mutuamente agradecidos.

“Os indianos do Rajastão foram fundamentais para o amadurecimento da orquestra. Poucos sabem que daquela região partiram os nômades ciganos, 200 anos atrás, para chegar à Europa, influenciando culturas diferentes com força prodigiosa.

Milagrosamente, os indianos da orquestra conseguiam um diálogo musical com os demais de maneira simples e ao mesmo tempo sofisticada. Sobretudo aqueles que de alguma forma foram contaminados pela música cigana, os romenos e os árabes em particular, criavam em torno deles um conjunto harmoniosíssimo.

Carmen
Carmen, de Bizet

Os rajastanis, infelizmente, tiveram de deixar a Itália por falta de visto e Mario pediu a Evandro que os substituísse de maneira criativa. “A nossa orquestra vai mudar com você”, disse o napolitano ao paulista do Piauí. “Eu sinto que a música do Nordeste tem alguma coisa a ver com a música do Rajastão.

Você está a fim de traduzir aquela música para a sua linguagem cultural?” Com grande surpresa, lembra Mario, os temas indianos soavam maravilhosamente bem em “brasileiro” e Evandro revelou-se, além de ótimo músico, talentoso autor que toca e canta de maneira encantadora. O inseparável cavaquinho é seu instrumento preferido, mas ele é bom com todos os instrumentos de corda.

“Graças à experiência com a Orquestra, eu me sinto a pessoa mais sortuda do mundo”, faz eco o brasileiro. “Esses anos foram para mim uma explosão de conteúdos: frequentar artistas muçulmanos, budistas, hindus, judeus, católicos e ateus me deu uma abertura para a música, a política, a religiosidade e a cultura de tantos homens diferentes de mim e tudo isso me amadureceu de maneira profunda. Eu era um menino suburbano de São Paulo, pouco interessado em outras questões além da música, agora virei outra pessoa.”

Mario-TroncoO agradecimento a seu mestre napolitano não poderia ser mais elogioso: “Devo muito à Itália e ao Mario. Eu fiz conservatório no Brasil, frequentei a Universidade de Música Tom Jobim, mas ele foi sem dúvida meu melhor professor: me ensinou a ser músico de verdade. Se você treina dez horas por dia, pode virar um grande instrumentista, mas para ser artista precisa de curiosidade, criatividade, que eu pude experimentar com ele. AOrquestra é um laboratório refinado de qualidade musical e fusão cultural, que o Mario soube construir conosco em harmonia. Os músicos são convidados a desenvolver um estilo próprio, inspirado, podem criar e propor com grande liberdade; depois, para evitar a anarquia, a última palavra é do mestre”.

“Do ponto de vista social e político”, continua Evandro, “eu curti nesses anos o lado melhor da Itália, o multiculturalismo, mas ao mesmo tempo conheci a xenofobia. Vivi a complexidade dessa última década, me identificando com uma visão progressista do mundo, que acho a única em condição de dar respostas construtivas aos desafios da humanidade. Desse modo, consigo viver plenamente minha nova identidade de cidadão do mundo.”

Da Piazza Vittorio à Lapa: dessa linda maneira, as distâncias oceânicas se encurtam. O mundo parece mais fraterno e bonito.

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