Ruralismo é raiz do comportamento anticiência, antiambiental e anti-indígena do Congresso
Por Rubens Valente, compartilhado de A Pública
Em novembro de 2022, quando ruralistas bloquearam diversas rodovias a fim de criar um caos que levasse a um golpe de Estado, eu fui pela Agência Pública ao município de Sinop, considerado o “coração do agronegócio” em Mato Grosso.
Com máquinas e tratores, os fazendeiros haviam bloqueado a principal rodovia de ligação entre Mato Grosso e o sul do Pará, a BR-163. Faixas pediam “intervenção”, um eufemismo para o golpe. Em um carro de som, os organizadores do bloqueio atacaram o Judiciário e apoiaram a expulsão de duas equipes de jornalistas que acompanhavam a manifestação, incluindo a Pública.
Mas, no frenesi que tomou conta dos golpistas, emergiu algo além da afronta à democracia. Ao microfone, dois organizadores também atacaram os alertas, feitos pela imprensa do mundo todo, sobre a emergência climática que o planeta vive. Disseram que era tudo um complô entre organizações não governamentais, “a mídia” e potências estrangeiras com o objetivo de destruir a agropecuária brasileira.
Citando números desconexos e declarações de líderes mundiais distorcidas e tiradas do contexto, disseram que os produtores rurais deveriam ficar em alerta porque essa ameaça estava chegando a Mato Grosso com objetivo de tirar renda, emprego e liberdade dos seus cidadãos. Os manifestantes acompanharam esses discursos visivelmente preocupados. Ao final, explodiram em aplausos. Pareciam agradecidos por receberem essas informações tão preciosas. Uma versão ambientalista do fantasma do comunismo.
Claro que não foi nenhuma surpresa. Nós sabemos que os sindicatos rurais até remuneram negacionistas do clima para darem palestras a agricultores e estudantes de agronomia no interior do país.
Militares graduados das Forças Armadas abertamente apoiam os negacionistas. Em 2021, uma ONG do ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas promoveu um encontro entre dois conhecidos negacionistas do clima e ministros do governo de Jair Bolsonaro.
Mas o que a cena em Sinop me lembrou, ao vivo e em cores, é que a estreita relação entre extrema direita e ruralismo vai muito além da negação da democracia. Ela procura destruir a base da confiança no conhecimento científico e no jornalismo que divulga os seus alertas. Essas forças obscurantistas promovem um atentado contra o futuro de um país cada vez mais vítima dos eventos extremos. Vide a catástrofe humana e ambiental no Rio Grande do Sul.
O movimento negacionista do clima não se resume a um bando de influencers que buscam cliques e dinheiro na internet à base de fake news. Partilhando das mesmas ideias estão forças economicamente poderosas em diversas regiões do país, em especial no interior de São Paulo, no Sul e no Centro-Oeste.
São capazes de eleger bancadas parlamentares inteiras, assembleias legislativas, câmaras de vereadores, governos e prefeituras. Elas moldam o comportamento de jovens, formam consciências e trabalham ideologicamente por um modelo de país – no qual o meio ambiente pode ser destruído em nome de um tipo de desenvolvimento econômico.
Isso não é escondido de ninguém. Vejamos o que disse, em março do ano passado, no plenário da Câmara, o presidente da poderosa bancada ruralista no Congresso Nacional, Pedro Lupion (PP-PR), cuja família tem um negócio na pecuária seletiva em Santo Antônio da Platina (PR). Ele é filho de Abelardo Lupion, um dos fundadores, no final dos anos 1980, do grupo de direita União Democrática Ruralista (UDR) no Paraná.
“Se há uma coisa que a esquerda e o PT conseguiram fazer neste país, principalmente nas últimas eleições, foi unir o produtor rural brasileiro, foi juntar todos nós como força de formação de ideias, de formação ideológica e, principalmente, de defesa dos nossos produtores e dos nossos produtos.”
“Formação ideológica”, disse o deputado Lupion. É importante lembrar que Lupion fez esse discurso em resposta a uma crítica feita pelo presidente da agência exportadora do governo federal, Jorge Viana (PT-AC), justamente contra a destruição do meio ambiente no Brasil. Acuado por notas da bancada ruralista e da Confederação Nacional da Agricultura, a CNA, outro dos mais poderosos grupos de lobby em Brasília, Jorge Viana teve que recuar e pedir desculpas pela declaração.
Ruralistas financiam a eleição de políticos comprometidos em abrir todos os espaços possíveis para o agronegócio. Querem barrar todos os esforços que tentam impedir o aumento da área desmatada. Muitos parlamentares, aliás, já são eles próprios os agronegociantes.
A bancada ruralista diz ter hoje 374 integrantes no Congresso (324 na Câmara e 50 no Senado), o que a torna, se o número estiver correto, o maior grupo de pressão nas duas Casas.
Esse grupo político tem procurado dar legitimidade aos negacionistas da emergência climática, uma crise amplamente comprovada à qual o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, já chamou de “ebulição global”.
Rechaçam qualquer crítica à devastação da Amazônia e não têm interesse em fazer autocrítica à luz dos fatos trazidos pela ciência. Escondem-se sob o manto do “respeito” à sua força econômica. No ano passado, Pedro Lupion disse o seguinte: “Esse setor precisa ser respeitado, e não ser sempre atacado com falácias. Esses discursos todos sobre agrotóxico, sobre poluição, sobre o agro do mal, sobre o agro que não é bom, sobre o agro que judia do Brasil causam muito medo na Europa e nos Estados Unidos. O agro sustenta este país e precisa ser respeitado”.
Promovem CPIs no Congresso a fim de tentar constranger ambientalistas, indigenistas e a parte do governo federal que defende a proteção dos biomas. Como esta última CPI criada do ano passado sobre “as ONGs”, no Senado, uma metralhadora giratória sem pé nem cabeça, que saiu do nada para lugar nenhum, conforme já comentei nesta newsletter duas vezes.
Aprovam ou ameaçam aprovar leis com o intuito de afrontar o Supremo Tribunal Federal (STF), como a que criou a teoria jurídica do “marco temporal” a fim de impedir novas demarcações de terras indígenas, teoria essa já desmontada e rechaçada pelo STF.
Mas o Congresso só espelha uma realidade bem mais profunda e assustadora. É a face de um Brasil difícil de aceitar. Algumas das principais raízes do comportamento anticiência, antiambiental e anti-indígena desse Congresso, o pior Congresso desde a redemocratização, estão no ruralismo. Estão em Sinop, por exemplo.
Quem quiser entender o bolsonarismo precisa vir a Sinop, me disse uma entrevistada do movimento feminista do município. Eu adiciono que é preciso entender Sinop para entender o pacote de projetos de lei que impulsiona a destruição ambiental e que o Congresso teve a desfaçatez de levar adiante em plena catástrofe no Rio Grande do Sul.
Se não entendermos Sinop, nunca entenderemos o “pacote da destruição” denunciado na semana passada com toda a força possível pelo Observatório do Clima, uma coalizão formada por mais de 90 organizações não governamentais.
As forças negacionistas, com o pé firme no Congresso, promovem um atentado contra o futuro do país. É um atentado diferente daquele 8 de janeiro, mas seus efeitos são igualmente devastadores. Por isso, é um dever do jornalismo – e eu falo aqui em especial da imprensa tradicional que tem acesso frequente a essas autoridades – cobrar em público Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), responsáveis últimos pela condução dos trabalhos no Congresso.
O título deste texto generaliza o cenário atual no Congresso. É claro que há exceções à regra, há parlamentares genuinamente preocupados com a questão climática, como as deputadas Célia Xakriabá (PSOL-MG) e Duda Salabert (PDT-MG), para citar apenas duas. Num artigo da semana passada para o Diplomatique Brasil, Duda dividiu os integrantes do Congresso em três grupos: “os ogros, os agros e o ethos”.
Os ogros seriam “aqueles que negam as mudanças do clima”. Já os deputados do agro, diz a deputada, “até reconhecem que as mudanças climáticas existem, mas se sentem tão apartados da discussão – e das suas consequências – que espalham pelo Congresso Nacional que poderiam se isolar em suas enormes propriedades sem sentir os efeitos do clima mais quente, da seca, das chuvas”.
Haveria também “uma outra corrente do agro que nega as mudanças do clima com convicção e, para piorar, financia pessoas que circulam pelo país dizendo que as mudanças do clima não existem”.
Conhecendo um pouquinho desse Brasilzão, eu não consigo ter o otimismo da deputada na hora de separar ogros de agros (embora ela mesma diga que exista uma corrente “agro” negacionista, o que para mim soa como contradição). De qualquer forma, se essa distinção existe, ambos os grupos se retroalimentam e se frequentam, o que dá no mesmo para o futuro do país no final das contas.
Por coincidência, na última viagem que fiz ao Rio Grande do Sul agora em abril, antes das chuvas e das inundações, fui lendo Uma enciclopédia nos trópicos (editora Zahar), o recém-lançado livro de memórias do antropólogo Beto Ricardo escrito em parceria com o jornalista Ricardo Arnt. Cofundador do Instituto Socioambiental (ISA), uma das principais ONGs indigenistas e ambientalistas do país, Beto testemunhou o trágico processo de destruição galopante da Amazônia nas últimas décadas.
“Em 1975, quando eu era jovem, apenas 1% da Amazônia havia sido desmatado. A natureza privilegiada da amplidão brasileira, cheia de florestas e rios, celebrada na bandeira, no Hino Nacional, na literatura e na música popular, inspirava promessas de felicidade […]. Em 1990, o avanço da frente de expansão econômica desterritorializara 5,5% do país; em 2022, a devastação atingiu quase 20%. Em cinquenta anos, a Amazônia perdeu uma área florestal equivalente à soma dos territórios da França e da Alemanha. Um terço foi queimado pela apropriação criminosa de terras públicas e pela expansão sem lei da fronteira interna”, escreveram os dois Ricardos.
“Chegamos à contingência de o desmatamento poder deflagrar uma ‘virada’ para o desequilíbrio sistêmico, se mais áreas florestais continuarem a ser derrubadas. Segundo os cientistas, uma redução total de 25% das florestas amazônicas pode desregular o clima no continente, gerar savanas emissoras de gases de efeito estufa e enxugar os rios voadores que descem para o sul, com isso afetando” – atenção especial – “a economia do agronegócio e a energia das hidrelétricas. Em qualquer cenário do futuro, repita-se, a conservação da Amazônia é estratégica para o país.”
Agora uma pergunta: você, cara leitora, caro leitor, já ouviu na TV alguma palavra de Arthur Lira e de Rodrigo Pacheco sobre isso?