A jornalista recordou seu início de profissão, no jornal O Globo, aos 17 anos, quando não tinha nenhum colega de esquerda para lhe ajudar e instruir. “Eu me construí sozinha quando pude aprender a pensar. Quando pude andar por mim mesma. Quando pude desvencilhar do pânico e do medo”, disse.
Leia o depoimento completo, durante o lançamento dos livros “Golpe de Estado”, de Palmério Dória, e “Lamarca o capitão da guerrilha”, de Emiliano Queiróz, na sede do “Centro de Estudos de Mídia Barão de Itararé” em São Paulo, no dia 4 de julho:
HILDEGARD ANGEL
Eu costumo sempre dizer que não fui uma militante política. Eu sou a irmã do Stuart, filha da Zuzu e nada mais do que isso. E uma jornalista, que tem histórias para contar.
Você falou em Samuel Wainer e nós estamos aqui falando do jornalismo brasileiro. E é muito ilustrativo desses momentos ditatoriais, de como eles deformam e revelam as pessoas, é que uma das mágoas de Samuel Wainer foi como ele foi rejeitado e maltratado pelos seus companheiros de profissão, à época em que ele foi perseguido politicamente no golpe militar de 64.
Um deles, me disse ele, era o seu grande amigo Ibrahim Sued. Quando ele foi se exilar numa embaixada, e o Ibrahim colocava na coluna que ele era da Bessarábia*, e insistia que ele tinha que ir para o paredão. E quando ele saiu, passou aquela nuvem negra, ele falou para Ibrahim: “como você, um grande amigo meu, tão querido, recebido na minha casa, sempre me elogiou quando eu estava no meu apogeu, fez tanta pressão para que eu fosse preso e até fosse para o paredão?”. Ele falou: “Samuel, eu fui menino de Nova Iguaçu (que é um subúrbio emblemático do Rio, de gente muito pobre), e eu aprendi que balão quando tá caindo, a gente tasca”.
Assim eu sinto hoje o governo da Dilma Rousseff. Essa frase do Ibrahim Sued ilustra muito bem o comportamento da imprensa hoje em dia. Eu estive com Hugo Carvana um mês antes de sua morte, no clube Marimbás. O Hugo já bem debilitado pela doença, ele tinha o hábito de ir aos sábados ao Marimbás para comer peixe fresco, e diante da vista da praia de Copacabana.
E ele me disse: “Hilde, como os nossos companheiros – os companheiros dele, de cinema, de artes, que assinam coluna no jornal O Globo – tinham coragem de tomarem as posições que estavam tomando?”. Alguns companheiros tradicionalmente de esquerda. E ele me dizia: “Hilde, mas ele…” e mencionava um cineasta, que não é o Jabor, e ainda disse: “o Jabor a gente nem mais considera”, querendo dizer que o Jabor já tinha virado um personagem pitoresco. “Mas o fulano, o outro da área musical, o beltrano, eles sabem, Hilde! Eles sabem o que pode decorrer disso que eles estão escrevendo! Eles sabem a consequência do que eles estão fazendo!”.
Esta foi uma lamúria do querido Carvana, dias antes de sua morte. E estes que sabem estavam lá carregando a alça do caixão do Carvana. Eles sabem, mas não abrem mão do prestígio, da aura de serem de esquerda.
Assim como no golpe de 64, tantos daqueles de esquerda apoiaram o golpe de 64. Jornalistas, intelectuais, grandes pensadores, e depois disseram que não pensavam que fosse dar naquilo. E rapidamente viraram casaca, a tempo de não macularem o seu prestígio.
Então esta é a história do oportunismo da imprensa brasileira, do oportunismo dos intelectuais brasileiros. Daqueles que se situam e formam suas panelinhas. Para manterem sempre muito bem valorizados seus cachês. Agora, neste momento, não valoriza o cachê ser de esquerda. O cachê fica baixo.
Valoriza o cachê falar mal das causas sociais, falar mal dos progressos sociais, das conquistas. Isso não é bom. Isto não dá lucro. Isso não dá pé de meia. Então, vamos pensar diferente…
Mas, se o seu contrato estiver espirando e você tiver a possibilidade de, para sair numa situação que lhe deu certa altivez, você vai mudar de posição, a tempo de sair com certo heroísmo, nem que seja da esquerda.
A verdade é que a nossa classe jornalística é feita de oportunistas. A verdade é essa.
Eu fui colocada no colunismo social aos 17 anos de idade. Eu de nada sabia, era uma menina. Não tive a esquerda para me apoiar. Não tive ninguém da esquerda para vir me cochichar no ouvido, e dizer: Hilde, não é por aí. Fui colocada pela minha mãe para me proteger, preocupada com a possibilidade de que eu, apaixonada que era pelo meu irmão, seguisse a sua causa. E ela me colocou no Globo. Para trabalhar com Nina Chaves, uma grande, grande liderança jornalística. Uma grande chefe que eu tive. E eu fiz direitinho o meu trabalho.
Mas tive o pudor de durante o governo Médici, assassino do meu irmão, e durante o governo Geisel, assassino da minha mãe, não ter noticiado de governos militares. E eu não era titular de coluna nessa época, saibam bem, e fiquei estigmatizada assim mesmo. Durante esses governos, via os colunistas sociais que eram incensados pela esquerda dizerem que o Médici era um grande gourmet, era um ótimo pé quente para o futebol, e que o Geisel era maravilhoso e que a filha dele era uma mulher culta, e blábláblá.
Eu, que era completamente ignorante, despolitizada, uma besta quadrada politicamente, nunca tive ninguém da esquerda para me dizer “é por aí”. Eu me construí sozinha quando pude aprender a pensar. Quando pude andar por mim mesma. Quando pude desvencilhar do pânico e do medo.
E a direita tinha horror a mim. Demorei 20 anos para poder assinar coluna, 20 anos! Tinha que assinar pseudônimo Perla Sigaud, porque a irmã de Stuart Angel não podia ter coluna de poder assinada no Globo. Eu só assinava coluna de televisão. E eu não sabia que era por isso. Era tão panaca que eu não sabia que era por isso.
É esse meu depoimento, muito obrigada.
***
Emiliano, você falou que nós não estamos num aparelho, como antigamente. Mas, num momento em que o Judiciário atropela a Justiça, o Legislativo atropela o regimento, eu acredito que nós estamos, sim, numa catacumba, acho sim que essa é uma reunião clandestina.
Eu acho que nós estamos sendo ingênuos, porque nós estamos vivendo de certa forma em um Estado de exceção. Nós estamos fazendo jogo do contente, nós não estamos num Estado regular. E nós temos que ter clara consciência disso. A sessão anteontem (02 de julho) da Câmara dos Deputados foi assustadora. Quando o presidente da Câmara [Eduardo Cunha] não dá a palavra a um parlamentar, líder de um partido, porque ele discorda do que ele vai dizer, isso é uma ato ditatorial. Quando ele corta a fala daquela pessoa, isto é um Estado de Exceção. Eu acho que nós temos que nos preocupar.
Um governo em que você se manifestar com uma elite sobre este governo de uma maneira simpática, você é rejeitado, com uma pessoa da classe média, você é rejeitada, e com uma pessoa da classe baixa, você é rejeitada, isso é um Estado de Exceção. Alguma coisa estranha está acontecendo.
Atualmente no Brasil, pelo menos no Rio de Janeiro é assim, você é como se tivesse lepra, e precisasse usar guizos, se você é simpática ao governo do PT. Isso é inédito! Nem nos piores momentos do governo do Collor tinha isso. Até no Collor tinham pessoas de verde e amarelo na rua. Alguma coisa muita estranha está acontecendo no Brasil. E não se conseguem mobilizar pessoas para irem às ruas, não. Isso é utopia, isso não existe. E veja só a faixa etária de quem está aqui. Nós temos que nos preocupar com isso, sim. Não há mais qualquer admiração por quem morreu contra a ditadura. Os jovens questionam, perguntam: “morreu? Então é porque era bandido, é porque alguma coisa fez, é porque se desviou do caminho do bem”.
Há alguma coisa muito séria acontecendo no Brasil. Nós não temos que esperar o golpe. O golpe já houve. O golpe já teve. A gente tem que realmente estar muito preocupados com as instituições, com o nosso país, com os nossos filhos, com as nossas vidas. Nós temos que nos proteger, estamos muito fragilizados. Eu tenho muito medo, estou muito aterrorizada, estou muito preocupada, mesmo.