Não, o pobre passarinho não seria alvo da lei Maria da Penha; chega de tentar justificar atitudes machistas utilizando exemplos do reino animal
Por Socialista Morena, compartilhado de Fórum
CYNARA MENEZES
Odeio injustiça e adoro observar pássaros. Caminho pelos jardins da superquadra onde moro em Brasília e identifico, com a ajuda do aplicativo Merlin, canarinhos-terra, curicacas, sabiás, saracuras… E não me canso de apreciar, nos galhos das árvores mais altas, essa maravilha arquitetônica que é a casinha do joão-de-barro, tão engenhosa quanto qualquer um dos palácios niemeyerianos da capital.
O casal trabalha junto na obra, feita com barro úmido, palha e esterco, pacientemente amassados com bicos e pés. É uma casinha simples, de bom parecer, com dois cômodos: um, a sala de estar, por assim dizer, e outro, forrado com penas, perfeito para o acasalamento. Lá a fêmea irá pôr e chocar os ovos. Um cantinho aconchegante para os pombinhos, ops, passarinhos, a futura mamãe e os joões-de-barrinhos…
Sob qualquer ângulo que se olhe, a ave marrom-avermelhada é uma espécie de Rodrigo Hilbert coberto de penas, um bom “homem” que fornece o conforto para a família: constrói sua casa com as próprias mãos para proteger a amada da intempérie e dos inimigos naturais. No entanto, inventaram uma má fama para ele, a de que o bichinho empareda a companheira quando “traído”.
É possível que o mito do joão-de-barro feminicida tenha se difundido com a música João de Barro, de Teddy Vieira e Muíbo César Cury, sucesso na voz da dupla sertaneja Tonico & Tinoco e depois com Sérgio Reis, em meados dos anos 1970.
O João de Barro, pra ser feliz como eu
Certo dia resolveu arranjar uma companheira
No vai-e-vem, com o barro da biquinha
Ele fez sua casinha lá no galho da paineira
Toda manhã, o pedreiro da floresta
Cantava fazendo festa, pra aquela quem tanto amava
Mas quando ele ia buscar o raminho
Pra construir seu ninho o seu amor lhe enganava
Mas neste mundo o mal feito é descoberto
João de Barro viu de perto sua esperança perdida
Cego de dor, trancou a porta da morada
Deixando lá a sua amada presa pro resto da vida…
Ou seja, enquanto o passarinho trabalhador, o “pedreiro da floresta”, saía para buscar o material para construir o ninho, a passarinha vagabunda o traía com outro! Uma narrativa que se confunde com as histórias que vemos todos os dias nos jornais, num país onde uma mulher é morta a cada 6 horas por companheiros e ex-companheiros inconformados com o final da relação ou por suspeita de “traição”, como aconteceu esta semana em Patos de Minas: achando que era traído, um homem de 25 anos matou a mulher, de 23, diante da filha do casal de 4 anos, e postou um vídeo do crime nas redes sociais.
Sob qualquer ângulo que se olhe, o joão-de-barro é uma espécie de Rodrigo Hilbert coberto de penas, um bom “homem” que constrói sua casa para proteger a amada da intempérie e dos inimigos naturais. No entanto, inventaram uma má fama para ele, a de que o bichinho empareda a companheira quando “traído”
É como se o joão-de-barro da canção, que “perde a cabeça” ao ser traído, servisse como justificativa para os bípedes humanos fazerem o mesmo com suas companheiras. A “adúltera” mereceu o castigo e foi emparedada viva (emparedar mulheres, aliás, é um clássico da vingança masculina na literatura). Se até um inocente passarinho faz isso, por que não um homem com o ego ferido?
Acontece que o passarinho é de fato inocente. Primeiro que fêmea e macho se revezam na busca de materiais para a construção da casa, não tem essa de um sair para “trabalhar” e a outra ficar em casa. E não há nenhuma evidência científica de que joões de barro emparedem as companheiras –ou que elas sejam capazes de trair. O joão-de-barro é monogâmico boa parte da vida; pode, sim, se divorciar do companheiro ou companheira, mas apenas por razões reprodutivas ou de saúde, segundo estudo feito com estas aves no Distrito Federal e em Minas Gerais.
Os biólogos da Universidade Federal de Juiz de Fora e da Universidade de Brasília descobriram casais de joão-de-barro vivendo juntos havia mais de 10 anos (os casamentos humanos duram 13,8 anos em média no Brasil). Um quarto dos casais monitorados permanecia na relação por mais de três anos. Em geral, os joões-de-barro tendem a ficar juntos por longo tempo, só os dois naquela casinha pequenina. É raro ver um joão-de-barro sozinho, sua vida está desenhada para coabitar.
Na Argentina, onde o joão-de-barro é chamado popularmente de hornero, por causa do formato de forno da casinha, e foi escolhido como “ave nacional” numa votação em 1928, não existe tal lenda; é criação do macho brasileiro mesmo. O hornero foi inclusive homenageado pelos hermanos com uma cédula própria, a de 1000 pesos, lançada em 2017, na qual se pode ver tanto o passarinho quanto sua peculiar morada.
O machismo adora utilizar a natureza para justificar seu comportamento. Quantas vezes eu não ouvi de homens que a monogamia não é natural porque não existe no mundo animal, ignorando que as araras, por exemplo, têm o mesmo companheiro ou companheira a vida toda?
O machismo adora utilizar a natureza para justificar seu comportamento. Quantas vezes eu não ouvi de homens que a monogamia “não é natural” porque não existe no reino animal, ignorando que as araras, por exemplo, têm o mesmo companheiro ou companheira a vida toda? Lançar mão dos bichos para ser homofóbico e adjetivar a homossexualidade como algo “anormal” tampouco funciona, porque foi observado comportamento homossexual em pelo menos 1500 espécies, como pinguins e macacos.
Chega de tentar amenizar atitudes bárbaras usando animais. Não, o joão-de-barro não seria alvo da lei Maria da Penha. Parem de injustiçar o passarinho. O comportamento real do joão-de-barro está muito mais próximo do protagonista da canção sertaneja, o “corno conformado” dos versos finais:
Que semelhança entre o nosso fadário
Mas eu fiz o contrário do que o João de Barro fez
Nosso senhor me deu força nessa hora
A ingrata eu pus pra fora, por onde anda eu não sei…
Que os homens aprendam com o joão-de-barro de verdade, não o da lenda: tanto macho quanto fêmea podem bater asas se não estiverem satisfeitos com o casamento. E sem violência patrimonial. Apesar da dedicação com a qual constroem suas casinhas, os joões-de-barro não são apegados à propriedade –tanto é que a abandonam após cada aninhamento. No caso de a relação azedar, os dois simplesmente saem por aí, voando sozinhos (e livres) até encontrar um novo amor. Sem stress.