Um (ex) favelado no Flamengo

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‘’É que virando aquela quebrada’’, disse eu, como se quisesse explicar um ponto de referência, à parceira. ‘’Não é quebrada, é rua. Tem uma banca, mas não do tráfico. Agora você tá no Flamengo’’ – tomei, de supetão, a resposta que me paralisou por segundos. ‘’Eu? Flamengo?’’, tentei explicar a mim mesmo, numa atitude de fazer entender que sim, estou num novo local, e que não a Rocinha, onde nasci e cresci. 

Por Edu Carvalho, compartilhado de Projeto Colabora




Faz um mês, só o primeiro, mas parece que foi uma travessia. Descer o morro, mesmo que a origem ainda esteja e siga lá; agora mais perto do mar, precisamente a cinco minutos de pé ou três de bike. Não minha, mas do aplicativo em que se paga a hora (você já sabe qual é). A adaptação? Um processo longo, não muito complicado, já que, antes de morar de fato em outro lugar que não fosse pra sempre a comunidade, vivi um exílio profissional em terras paulistanas, na casa de uma madrinha, onde que nem eu, homem negro, só tinha o Zé, guarda local. E por vezes um pai véio preto de cabeça branca, que ainda não sei ao certo se existia mesmo ou se era só eu chapado de trabalho.

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No novo lar, na segunda noite de estadia, a saudade do frenesi desconcertante, em que pesava querer comprar qualquer coisa na distância de uma escada, 24 horas, sem parar (Rocinha 1 x 0 Flamengo). Foi difícil pra mim, mesmo antenado, me ver ser objeto derrotado por um aplicativo de entregas em casa, onde tracei – nada mais, nada menos – que três litros de leite e um pote de achocolatado, esquentando o coração antes de capotar. E talvez só assim, tarde da noite e praticamente obrigado, me faça aprender a comprar por entregas (a primeira vez, e guiado por videoconferência). Ter quem me ligar, avisando da chegada. Receber com pompa: ‘’aqui, doutor’’, ainda que não faça doutorado. O moleque devia ter a minha idade. 

Mas era disso que eu também queria falar: a loucura que é ter porteiro. Rapaz…Tem coisa mais esquisita, pra alguém que sempre chegou sem ser apresentado, só mesmo tendo que pedir licença, ter agora quem faça esse trabalho? E mais: cruelmente atravessado pelo racismo estrutural, ter que fazer a separação nível apartheid do elevador. Pois é. O Pedro, moto-táxi que roda comigo, quase encurralado a subir pelo ‘’de serviço’’. Na hora, banquei, de chinelo mesmo: ‘’A partir de hoje, quem chegar pra minha casa, vai pelo social’’. 

Da rotina bairrista, o exercício ao ar livre, como já fazia no meu antigo escritório – São Conrado – sempre ocupando espaços ‘’nunca dantes navegados’’. Disputando comigo a área de corrida, senhores, senhoras, senhorios e cachorros. Sim. No Flamengo, tem muitos velhinhos e pets. Talvez para dar sensação de segurança, já que, mesmo na luz do dia, habita por ali a certeza de que se pode ser assaltado na passagem ou que alguém está na espreita, atrás da árvore ou das plantas. O mesmo quando na rua de casa, que toma as costas de uma igreja – tô vendo vantagem nisso, uma facilidade de rezar só dando passinhos, podendo assistir a missa animada. Festa de dentro que não acontece fora, onde no mercado do lado do local santo, pessoas se amontoavam outro dia por ossos despejados. Aqui, entre favela e áreas do asfalto, parece não haver diferença, como a capa do jornal Extra, na última terça (9). 

O silêncio que invade a chegada da noite soa como abraço, ainda que tenha vivido sob sons de cultos, batuques e caveirões voadores, a disparar balas a dar com rodo. E tenha se acostumado, ou melhor, entendido como sobreviver e não parar de produzir. E ter água quente. Do quarto, recolhido, ver pela janela o prédio que dá de frente, onde vejo ostentadas as bandeiras do Brasil de um lado, e do outro, a cara do Lula. Se na favela aconteceria o mesmo? Sim, mas te garanto que estaria em menor quantidade o símbolo sequestrado pelo atual presidente. De acordo com uma pesquisa inédita G10 Favelas/Favela Diz, o presidente Jair Bolsonaro (PL) é o nome mais rejeitado entre os candidatos à Presidência nas comunidades, enquanto Lula ganha a preferência dos eleitores. 

Entre operados e em prestes a operar, tô nesse novo posto, vendo debaixo, e não da laje, a visão da vida. De frente pro Pão de Açúcar, trocando a Pedra da Gávea e os Dois Irmãos como companheiros de batalha e segredos. Esperando um novo Brasil através de cartas e atos públicos presenciais pela democracia – se ainda existir país nesta sexta.

E, falando em Pão de Açúcar, vocês já pararam pra ver os aviões saindo do Santos Dumont? É uma onda.

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