Todos os filmes de Pedro Almodóvar são, em alguma medida, filmes de amor. Todos são, também em diferentes medidas, filmes políticos. Mães paralelas, que está em cartaz nos cinemas e entra na Netflix no próximo dia 18, talvez seja o lugar em que essas duas forças – o amor e a política – encontram seu ponto máximo de fusão.
Por José Geraldo Couto, compartilhado de IMS
No início temos dois personagens, uma mulher e um homem: a fotógrafa Janis (Penélope Cruz) e o antropólogo forense Arturo (Israel Elejalde). Eles se conhecem quando ela o fotografa para uma revista e logo se unem para um projeto eminentemente político: conseguir apoio e verbas para a exumação de vítimas da ditadura franquista enterradas numa vala comum no interior da Espanha.
Num segundo momento, o homem e a política saem de cena (ou pelo menos do primeiro plano) e ficamos com duas mulheres: Janis e a adolescente Ana (Milena Smit). Ambas estão nos últimos dias de gravidez e dividem um quarto numa maternidade.
Homens ausentes
A maior parte do filme narrará a relação entre essas duas mulheres de diferentes gerações, origens sociais e visões de mundo: as dores (literais) do parto, a amizade, o distanciamento, o reencontro, a história de seus respectivos filhos, etc. Como costuma acontecer no universo ficcional de Almodóvar, a amizade entre as duas é uma forma muito palpável e intensa de amor.
Também como de praxe nos filmes do diretor, cada encontro entre dois seres é uma promessa erótica que pode ou não se concretizar. Em Almodóvar, como em poucos artistas de nossa época, eros é praticamente sinônimo de amor, como na sua origem mítico-etimológica grega. Por isso, uma de suas virtudes maiores é a maneira como filma cenas de sexo, algo que sempre corre o risco de cair na vulgaridade ou na estética publicitária.
Mulher com homem, homem com homem, mulher com mulher, não importa: nos filmes de Almodóvar os amantes são invariavelmente corpos entrelaçados em que não há dominador nem dominado, quase sempre filmados do alto, verticalmente, num balé que é também uma cerimônia.
Diz um verso famoso de Manuel Bandeira que “os corpos se entendem, mas as almas não”. Em Almodóvar, salvo raras exceções, os corpos se entendem e as almas também. O ato sexual é um momento de comunhão total. E esse momento fugaz parece irradiar energia para o restante da trajetória dos personagens, vale dizer, para o restante da narrativa cinematográfica.
Quando ressurgem com força na tela o homem e a política, isso se dá já em outro patamar de densidade dramática. A esta altura já estamos envolvidos emocionalmente com as personagens, em especial com as mulheres. A bem da verdade, nós as amamos, desde a criança mais tenra à mais encarquilhada anciã.
A política dos afetos, das relações entre os corpos e as almas, se entrelaça então com a história coletiva, isto é, com a política propriamente dita. O resultado é de uma pungência extraordinária. E aquela plongée vertical das cenas de sexo, tipicamente almodovariana, retorna de um modo inesperado e com sinal dramático trocado no plano final, que não vou descrever aqui para não estragar seu impacto. Eros transmutado em Tânatos, epifania às avessas.
Redenção possível
Se o filme anterior de Almodóvar, Dor e glória, era essencialmente masculino, Mães paralelas é, desde o título, um filme de mulheres, do qual os homens estão virtualmente ausentes, assim como ficam de fora da relação de uma mulher com seu útero. Alguns são mencionados como estupradores, opressores, covardes. De alguns vemos as fotos, de outro ouvimos a voz.
Que um desses homens mereça uma redenção – justamente o que não se negou a encarar corajosamente o passado coletivo – atesta, a meu ver, o humanismo profundo e libertário do cineasta, que chega a jogar com a nossa pressa em julgar os personagens.
Dois exemplos desse jogo em Mães paralelas: depois das primeiras aparições de Arturo, somos levados a condená-lo como um pusilânime homem casado que engravida a amante, tenta convencê-la a abortar e em seguida tira o corpo fora. Depois, veremos que não é bem assim. De modo análogo, nosso primeiro impulso é julgar sumariamente a mãe da jovem Ana (Aitana Sánchez-Gijón) como uma mulher egoísta e insensível, até que descobrimos outros detalhes da sua história e outras nuances da sua personalidade.
Em suma, não há heróis nem vilões nesse universo, só gente submetida às mais variadas circunstâncias de vida. Mas não há determinismo, tampouco: por mais estreita que seja a margem de manobra, os dilemas morais estão presentes. Só que ninguém está condenado de antemão. Toda história pessoal pode ser reescrita, assim como a história coletiva, sem contudo esquecer, enterrar ou falsear o passado.
Em tempo: um ótimo complemento a Mães paralelas é o documentário O silêncio dos outros, dirigido por Almudena Carracedo e Robert Bahar e produzido pelo próprio Pedro Almodóvar. Trata justamente da tentativa de encontrar restos mortais de pessoas executadas pelo franquismo, restaurar a verdade histórica, processar criminalmente os carrascos ainda vivos (e condenar moralmente os que já morreram).
Um filme de uma contundência tremenda, sobre o qual escrevi quando foi exibido na Mostra Internacional de São Paulo. Seria mais do que oportuno lançá-lo nos cinemas ou em alguma plataforma de streaming.