Por Claudio Lovato Filho, jornalista e escritor –
“É só jogar”, o técnico tinha lhe dito várias vezes ao longo dos últimos dias. “É só jogar o seu futebol”.
Ele tentou acreditar nisso. Tentou se imbuir do sentimento de que seria apenas o caso de entrar em campo e jogar o seu futebol.
Gente boa, esse seu novo treinador.
Mas falar sempre foi mais fácil que fazer.
A alguns minutos de começar a andar pelo estreito corredor e subir a escadaria que levava ao campo do estádio do clube pelo qual jogou por exatos 11 anos e sete meses, ele estava nervoso. Felizmente, conseguiu contar com a compreensão e a camaradagem do assessor de imprensa do novo clube e assim escapou das entrevistas coletivas na semana que antecedeu o confronto. Mas agora o coração estava disparado e havia suor frio descendo pelas costas, um suor que nada tinha a ver com o suor normal do aquecimento no vestiário. Havia também um desconforto terrível cada vez que percebia um dos novos companheiros olhando com o que ele avaliava ser um ar de desconfiança, sem contar aquele exasperante tremor nas mãos e nas pernas enquanto fazia a sua oração individual num canto do vestiári o dos visitantes, vestiário que ele usava pela primeira vez.
“É só jogar”, disse e repetiu o treinador a semana inteira. “É só jogar o seu futebol”.
Pois sim. Ele é que sabia o que estava enfrentando. Ele é que sabia.
Perguntava-se se seria aplaudido, vaiado ou tratado com indiferença pela torcida da qual fora ídolo durante mais de uma década.
E se fosse vaiado? Como reagiria? Era um sujeito tímido. Não conseguiria colar um sorriso na cara, dar tantas entrevistas quantas lhe fossem solicitadas pelos repórteres de campo e sair trotando. Não conseguiria.
E se fosse aplaudido? Tentaria levantar os braços e acenar para a torcida, acenos para todos os quadrantes do estádio. Isso ele acha que conseguiria fazer. E se isso acontecesse ele seria o homem mais feliz do mundo.
Mas e se lhe fosse concedida apenas a mais pura e simples indiferença? Bom, isso era tudo o que ele não queria. Talvez até mesmo preferisse as vaias.
O técnico agora chegara ao seu lado. Já estavam todos de pé, começando a caminhar em fila em direção à escadaria. O técnico lhe disse:
“E aí? Tudo bem?”
E ele respondeu:
“Beleza”.
Então os jogadores de seu novo time, o segundo time que ele defendia na vida, começaram a caminhar pelo corredor estreito e escuro que levava ao campo, e ele, naquele exato instante, quis muito, quis de todo o coração estar bem longe dali, quis estar ao lado da mulher e dos três filhos, caminhando com eles na beira do açude que ficava no terreno comprado havia um ano em sua cidade natal, no interior, no qual ele construíra uma casa pequena, porém muito simpática e confortável, seu refúgio, seu pequeno e indevassável paraíso. Mas não podia estar lá agora. Não estava lá. Estava ali, no estádio que fora a sua casa, ou talvez até mais que isso, por 16 anos, contando o tempo das categorias de base.
Ele estava no meio da fila – nem entre os primeiros jogadores que iriam pisar no gramado nem na rabeira. Logo atrás dele, um companheiro de time, um velho conhecido com o qual jogara junto e chegara a fazer boa amizade no início da carreira, colocou a mão em seu ombro e deu dois tapinhas, rápidos e firmes. Um gesto simples, solidário e sincero. Ele virou-se e sorriu. Camaradagem sincera, atitude de valor que jamais seria esquecida.
A luz do sol bateu em cheio em seu rosto quando o companheiro que estava imediatamente à sua frente venceu o último degrau da escadaria e foi para o campo. Quando isso aconteceu, não levou nem mais um segundo para que ele começasse a ver, na boca do túnel, uma enorme quantidade de repórteres com suas câmeras e seus microfones, uma barreira humana formada repentinamente diante dele, todos olhando para ele e vindo em sua direção. Mas ele queria olhar mais atrás e mais acima deles, ele queria ver a torcida. E foi abrindo caminho entre repórteres e cinegrafistas e fotógrafos, o passo apressado em direção ao campo, tenso, e quando conseguiu chegar lá, bem no centro do gramado, no grande círculo, que era sua região preferida de trabalho, ele levantou os olhos para as arquibancadas e o que ele viu e ouviu (o que ele viu e ouviu!) naquele momento o fez se sentir feliz de um jeito até então desconhecido para ele; fez com que se sentisse completamente realizado. Naquele momento, ele se convenceu, profunda e definitivamente, de que tinha feito tudo da melhor maneira possível; tinha feito tudo de maneira digna e honrada.
E então seu coração ficou leve. E ele jogou.