Um homem trans sobe ao ringue

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Publicado em El País – 

Thomas Page McBee nasceu num corpo de mulher. Após custosas cirurgias de redesignação sexual, transformou-se no que é hoje: um escritor que mergulha em sua biografia para refletir sobre o gênero e a identidade. Em seu último livro, narra sua experiência como boxeador amador e questiona a relação entre a masculinidade e a violência.

A história de Thomas Page McBee é de uma dupla transformação: a primeira delas, de mulher a homem; a segunda, de homem a homem. Passou pela primeira aos 20 e tantos e a concluiu há sete anos, em 2012, quando recebeu — após investir milhares de dólares em cirurgias complicadas, duas visitas a um cartório, duas avaliações físicas, um certificado médico e a injeção de quase 100 miligramas de testosterona na coxa a cada semana — um novo documento de identidade que finalmente determinava que não era a mulher que havia nascido, e sim um homem. Iniciou a segunda transformação naquele momento e a concluiu no final de 2015, na lona de um ringue do Madison Square Garden, em Nova York, quando lutou num combate beneficente, porque nesse dia Thomas Page McBee se tornou o primeiro transexual a competir como pugilista no santuário do boxe dos Estados Unidos. Perdeu o duelo, mas foi um triunfo vital.

Sobre essas transformações, sobre as permanentes mudanças que nutrem a experiência do ser humano, sobre o modo como um corpo pode passar de se sentir ameaçado a ser uma ameaça, sobre as aparências e a empatia ele fala em seu livro Amateur: A True Story About What Makes a Man (Amador: uma história real sobre o que faz um homem), um exercício confessional e emocionante elogiado pela crítica nos EUA e no Reino Unido. O livro chega em 15 de janeiro ao mercado espanhol (ainda é inédito no Brasil) com a aspiração de se tornar uma leitura capaz de vislumbrar uma nova maneira de entender a masculinidade e dar uma perspectiva honesta sobre as interseções entre a violência e a identidade. Nele se revelam identidades e sentimentos, e o leitor descobre não só o processo pelo qual Page McBee chegou a lutar boxe, mas também como foi o caminho de aceitação e aprovação de si mesmo numa sociedade hostil.




Um homem trans sobe ao ringue
ERIK TANNER

Em um solitário café do Brooklyn numa luminosa manhã de outono, depois de treinar num parque vizinho, Thomas Page McBee, um jovem de aparência frágil, muito conversador e próximo, que dificilmente poderíamos imaginar lutando num ringue, recorda a tarde de 2014 em que, por coincidência, fez a si mesmo uma pergunta que seria a origem do livro e também o motivo que o levaria a treinar na famosa academia Mendez de Manhattan: o que leva um homem a bater em outro? Naquela tarde, Thomas Page McBee teve um percalço na rua Orchard do Lower East Side: experimentou a violência com um sujeito que, de forma inapropriada e por causa de um mal-entendido, o ameaçou e tentou agredi-lo. Foi isso que o levou a se tornar pugilista e tentar entender a origem da violência, de onde nasce o desejo de um homem de agredir outro homem. “Agora sei que o garoto queria me bater para defender seu lugar na sociedade”, diz. “Ele se sentia ameaçado em sua masculinidade, e só podia reconquistá-la através de golpes e dominação.”

“O que é tóxico não é a masculinidade, mas a maneira como a ensinam: a esconder os sentimentos, a dominar, a não estar conectado com a empatia”

Uma vez tomada a decisão de ser boxeador, entre seu passado e seu novo corpo surgiram fendas que o obrigaram a construir uma ponte. “Não tenho dúvida de que minha vida é o que acontece depois de minha transformação”, afirma. “Mas meu passado sempre está vivo. Tenho que enfrentá-lo a fim de que possa funcionar em minha nova vida.”

Thomas Page McBee nasceu pela primeira vez em Hickory, na Carolina do Norte, em 1981. Cresceu como uma menina sentindo-se menino. Até que, 27 anos depois, iniciou o processo de transformação. E assim Thomas Page McBee nasceu pela segunda vez, em 2012, aos 31 anos. Na época já era jornalista. Mudou-se para Nova York e começou a colaborar com veículos como VICE, Playboy, Glamour e The New York Times. Foi editor do site de notícias Quartz. Em 2014, publicou Man Alive, seu primeiro livro, uma autobiografia em que relatava sua transformação, enfrentava a experiência da virilidade a partir do zero e confessava a tormentosa relação vivida com seu padrasto, os assédios a que ele o submeteu na infância, assim como a abordagem, à ponta de pistola, que sofreu por acidente aos 29 anos. Dois atos de violência que marcaram sua vida e sua maneira de escrever. O livro recebeu o Lambda, o prêmio literário a obras sobre a comunidade LGBTI.

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ERIK TANNER

Quando Thomas fala de seu passado, pensa em seu brinquedo favorito, aquele musculoso He-Man e o castelo dos Mestres do Universo. Não pode evitar recordar os abusos sexuais de seu padrasto dos quatro aos nove anos, sem que sua mãe percebesse. “Meu caminho à masculinidade foi se escurecendo pela sombra de meu padrasto”, diz em sua confissão. Ele também narra como, durante toda a adolescência, assumiu o apelido “mulher-macho” com o qual o chamavam (“Você é como um menino, mas melhor”, confessou-lhe uma garota aos 15 anos). E a forma como enfrentou o clássico “nasci num corpo errado”. Quando escuta dizerem que “na infância se vive e depois se sobrevive”, ele esboça um sorriso triste e completa: “Não no meu caso… Foi duro, mas também conservo boas lembranças. Vi e sofri situações escuras, mas descobri possibilidades para a escapada. Minha confissão não é um lamento. Por exemplo, tive uma professora no secundário que me incentivou a escrever poemas, e graças a ela sou escritor. Minha mãe também me incentivou. Ler e escrever se transformaram numa via de conexão. Além disso, naquela época, ou mais exatamente na adolescência, tive a sorte de desfrutar de duas leituras fundamentais que me ajudaram a compreender o mundo. Uma foi A Sangue Frio, de Truman Capote, que me influenciou muito. Mas tão tanto quanto Frankenstein, de Mary Shelley. Gosto desse monstro complicado, vencedor de seu pai, que na realidade não é um monstro, é uma pessoa. Ao mesmo tempo, seu processo simboliza, como uma parábola, os desafios enfrentados pela ciência.”

Em seu caminho à masculinidade, numa transformação que incluiu a cirurgia de redesignação sexual (também conhecida como cirurgia de afirmação de gênero), a sociedade que recebeu Thomas Page McBee estava longe de ser a ideal, e em muitos momentos ele quis fugir dela do mesmo jeito que tentava fugir de seu padrasto na infância. “Nos EUA, o menino é educado para ser homem”, diz, “e o tóxico não é a masculinidade, e sim a maneira como ensinam a sê-lo. Por exemplo, a esconder os sentimentos, a dominar, a não estar conectado com a empatia. Quando mudei de sexo, tive que aprender a ser um homem, e embora tenha me sentido muito mais em harmonia com meu corpo, não estava feliz com uma sociedade que só aceitava uma maneira de sê-lo. Mas a sociedade está mudando, porque isso não é um problema biológico ou de níveis de testosterona; é um problema de educação. Temos que criar mais modelos de masculinidade, mais opções de ser homem.”

Allison Hobbs, em seu livro A Chosen Exile (um exílio escolhido), uma das referências de Page McBee, escreveu: “Os pobres buscam a aprovação dos ricos; as mulheres, dos homens; os judeus, dos gentios; e os homossexuais, dos heterossexuais.” Thomas partiu em busca da aprovação social, mas não para alcançar um privilégio, e sim para aprender a usar os códigos sociais de comportamento. Por mais que tivesse se submetido a uma operação que reconstruiu e alisou seu peito, que seus ombros tivessem se alinhado, suas coxas perdido o volume e sua barba começado a crescer, nos primeiros encontros com meninas ele diz que sua maneira de agir se assemelhava à de uma planta ao Sol. “Me deslocava para aquela parte de mim que de algum modo se via recompensada”, recorda. Por isso se mostrava agressivo, ambicioso, com uma atitude tão corajosa. “No início, não conhecia bem as regras. Tentava ter relações, mas sempre fracassava. Criava confusão. Não fazia nada bem. Finalmente aprendi as regras, e aí percebi que tampouco me agradavam.” Até que apareceu Jess. A primeira noite em que conheceu sua atual esposa, Jessica Bloom, exibiu todo um mostruário de dúvidas e falta de jeito. Ela o deteve e lhe disse que era atraída pelas pessoas, não pelos corpos.

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Thomas Page McBee, numa foto da infância, ainda num corpo de menina (em cima); e com sua mãe, Carol Lee McBee.
Thomas Page McBee, numa foto da infância, ainda num corpo de menina (em cima); e com sua mãe, Carol Lee McBee.

Nessa indagação, o abraço é um dos grandes temas do livro. O abraço entre amigos, entre boxeadores, a quantidade de pessoas que batem porque não têm quem as abrace, a solidão como uma doença terrível. “Tudo isso está muito associado à masculinidade”, explica. “Os homens tocam menos que as mulheres e têm mais dificuldade de dizer que se sentem sozinhos. Sei disso por minha experiência, minha transformação. Agora as pessoas me tocam menos. A solidão conduz ao suicídio, e posso dizer que os homens sentem mais solidão que as mulheres.”

Desse modo, Thomas Page McBee arriscou seu corpo para ganhar o direito de existir nele. Empreendeu uma aventura para explorar na perda e conhecer a si mesmo, consciente de que não existe um único protótipo de homem. Nessa odisseia, encontrou dois aliados de certo modo catárticos: o boxe e a literatura. Hoje, considera que os treinadores que conheceu nas academias subterrâneas são membros de sua família. E, ao ver sua experiência em letras e papel, sente que se conectou com as pessoas através da escritura.

“Estou surpreso de ver o quanto o boxe me ensinou a ser eu mesmo em meu corpo. Graças ao boxe, conheço minhas fortalezas e minhas fraquezas. Meu corpo não é perfeito, mas o sinto meu. No ringue a violência é pactuada, você não bate em alguém que não queira estar ali ou que seja mais fraco. É uma decisão conjunta. A literatura, por sua vez, é o grande presente, permite estar na mente de outra pessoa e desencadear o que sente, viver outras emoções. A literatura me faz sentir parte da família humana e saber que não há nada de mim que seja igual em outro.”

“Os homens supostamente devem saber tudo sem pedir ajuda. Mas a inocência é sobretudo ser capaz de perguntar. Para mim, é libertador”

Ao meio-dia, o solitário St Coffee começa a ficar lotado. O Sol acaricia o vidro e obriga Page McBee a desviar o olhar. Ele observa os pedaços de pizza que deixou, aos quais não voltará. Recordamos Joan Didion, que dizia que a inocência acaba quando roubam da pessoa a ilusão de simpatizar consigo mesma. Thomas sorri e concorda, dizendo que por esse motivo o livro tenta entrar na mente de um principiante. “Os homens supostamente devem saber tudo sem pedir ajuda”, afirma. “E a inocência é sobretudo ser capaz de perguntar, de se perguntar. Para mim, é libertador dizer: ‘Não sei nada sobre esse tema. Como tenho que agir? Como devo agir?’ Inocência é se questionar, é não se basear nessas suposições.”

Thomas Page McBee fala aos borbotões, misturando em seu discurso músicas de Paul Simon e escritores ilustres que utilizaram a figura do louco, como Dostoiévski. Também cita a historiadora norte-americana Nell Irvin Painter (“A raça é uma ideia, não um fato”) e sua constatação de que ninguém nasce vendo-se a si mesmo como homem, ou como norte-americano, ou como homossexual, ou como branco. “Nos transformamos nos corpos que somos, e o transcurso da história nos atravessa, a toda velocidade, como se fosse uma doença ou uma revolução”, diz. Hegel dizia que a arte é a individualização do universal. E Page McBee individualizou um problema universal —a aprovação social e a nova concepção da masculinidade. Durante boa parte de seu livro, a palavra mais repetida é crise, em relação a economia, valores, masculinidade. E acima de tudo está a intenção do autor de contar uma história global a partir de sua própria experiência como homem transexual, visto pela maioria como um alien, e de gerar empatia. “Para muitas pessoas, é difícil prescindir da ideia de que o gênero é uma marca de nascimento. Eu sou uma desagradável prova de que não é assim. Se você me perguntar em que consiste exatamente a ideia de gênero, direi que sou um paradoxo porque acho que gênero é algo que nós criamos. Passei por duas transições para chegar a ser eu mesmo, e creio que ambas são verdadeiras. Gênero é uma criação cultural e, ao mesmo tempo, é o primeiro aspecto de nossa personalidade porque é o primeiro que se vê de nós.”

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ERIK TANNER

Sarah DiMuccio, pesquisadora norte-americana da Universidade de Nova York, ofereceu num artigo publicado na revista universitária Psychology of Men & Masculinity uma definição cultural que combina bem com os sentimentos de Page McBee. Após um período de pesquisa na Dinamarca, DiMuccio descobriu que os dinamarqueses diziam “ser um homem” em oposição a “ser um menino”, ao passo que nos EUA se diz “ser um homem” como o oposto de ser uma mulher. McBee concorda completamente, pois “se ser feminino é o oposto de ser um homem”, diz, “então muitas das qualidades que os norte-americanos associam com as mulheres, como a empatia, que é própria tanto de meninos como de meninas, não apenas são questionadas durante a infância, mas são destruídas.”

A mãe de Thomas Page McBee, alheia aos abusos sexuais de seu segundo marido, consumava dizer ao filho: “Você foi meu menino milagroso, tem um coração de ouro.” A relação entre ela e Thomas, a maneira como ambos consideram o gênero como uma desculpa para adiar e evitar assim a conversa pendente —que a morte dela (por alcoolismo) acabou impedindo—, é um dos aspectos mais comovedores do livro. “Às vezes, as pessoas perguntam quem é nosso modelo masculino, e eu não tenho um modelo masculino. Minha mãe era meu modelo de gênero porque sempre fez coisas que as mulheres supostamente não faziam. Graças a ela, aprendi que os esquemas podiam se romper. Ela era cientista quando nenhuma mulher era, trabalhava para o Governo americano quando as mulheres não trabalhavam para o Governo americano. Trabalhou para a General Electric e se formou na universidade. Me permitiu e me incentivou a ser eu mesmo. Agora que sou adulto, percebo como tive sorte. Quando ela morreu, eu havia mudado de sexo um tempo antes, e não tive a oportunidade de criar uma nova relação de filho e mãe com ela; era o mesmo, mas já não era uma mulher e já não tivemos oportunidade de nos conhecermos de novo. Reflito muito sobre o que ela poderia pensar de mim agora… Acho que estaria feliz.”

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ERIK TANNER

Hoje Thomas Page McBee é um homem recém-casado; mantém uma estreita relação com sua irmã mais nova, Clare; mostra-se satisfeito ao ver que as mulheres de sua vida pensam que é melhor pessoa por ter se transformado no homem que era; e diz que a família, assim como o gênero, é uma questão de contexto. É pugilista amador e jornalista em diversos veículos, e viaja pelos EUA fazendo palestras e reivindicando a vulnerabilidade dos homens como um valioso bem da masculinidade. Sua mulher, Jess, de algum modo também participou da história do livro porque naquela noite na rua Orchard, em que McBee esteve a ponto de levar uma surra, ele procurava um restaurante para convidá-la para jantar. Quando ele lhe contou o episódio, ela o tranquilizou: “Para mim, sua sensibilidade e sua ternura são muito masculinas.”

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