Depois do inferno da prisão, bairro de Belo Horizonte vira destino de quem saiu da cadeia e não tem para onde ir
Por Leandro Aguiar, compartilhado de A Pública
Em agosto de 2023, Daniel, mineiro de Teófilo Otoni que acabava de completar 40 anos, deixou o presídio José Drumond, em Ribeirão das Neves, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Depois de 19 anos na cadeia, uma viatura da Polícia Penal o conduziu à Lagoinha, bairro belo-horizontino onde teve início, em 1894, a construção da cidade. No início da ladeira Além Paraíba, na sede da Polícia Penal, uma tornozeleira eletrônica foi instalada em sua perna, e assim ele alcançou a liberdade provisória.
Solto na Lagoinha, Daniel foi morar na rua. Todo dia caminha até a sede da Polícia Penal, a fim de recarregar a bateria da tornozeleira. Ele foi preso em 2004, condenado no mesmo ano por tentativa de homicídio e recebeu pena de 10 anos. Após sucessivas brigas com outros detentos, o período foi alargado para 19 anos. Cada vez que precisava “pagar castigo”, era transferido de cidade, e quanto mais aumentava a distância da casa de sua mãe, em Teófilo Otoni, mais raras tornavam-se as visitas, até o dia em que cessaram. Não tem contato com a família, trabalho, dinheiro nem documentos – extraviados em seu périplo pelo sistema prisional.
A LEP (Lei de Execuções Penais) determina que o preso deve, preferencialmente, cumprir pena “em local próximo ao seu meio social e familiar” e ser movido para local distante apenas “quando a medida se justifique no interesse da segurança pública ou do próprio condenado”. Na fase final de cumprimento da pena, estabelece a LEP, o Estado deve orientar o preso para “facilitar o seu retorno à liberdade” e, se necessário, ajudar sua família. Caso o egresso não tenha para onde ir, fica o poder público obrigado a conceder “alojamento e alimentação, em estabelecimento adequado, pelo prazo de dois meses”.
Na prática, porém, não é o que se vê. Na maioria dos estados brasileiros, os presídios se concentram na Regiões Metropolitanas ou em áreas específicas; muitos detentos cumprem pena longe de casa e perdem o contato com a família, o que dificulta ainda mais a ressocialização. E em diversas cidades surgem depósitos de ex-presos, áreas cujo funcionamento é voltado para a burocracia pós-cárcere e para a aplicação de medidas cautelares, como a instalação de tornozeleiras eletrônicas.
Foi o que aconteceu com o Complexo da Lagoinha, que virou uma espécie de cidade dentro da cidade, tornando-se o destino comum dos egressos do sistema prisional em Minas. Por lá vivem os que estão em liberdade provisória, como Daniel, e os muitos que cumpriram pena e estão livres de vez, mas não têm dinheiro nem motivo para voltar às suas cidades. É lá que uma legião de ex-detentos passa dias e noites nas ruas, numa rotina de drogas, miséria e crime. Muitos reincidem e voltam para a prisão.
A Lagoinha liga a região Noroeste de BH ao centro da cidade, e desde os anos 1980 se converteu em moradia provisória de quem não podia arcar com o preço dos aluguéis. Segundo a Prefeitura de BH, hoje vivem na região cerca de 400 pessoas em situação de rua, número subestimado na percepção de assistentes sociais que trabalham ali – e falam em mais de mil pessoas. A população do bairro é de cerca de 4 mil pessoas, segundo dados do Censo de 2010. Os dados do último recenseamento ainda não estão disponíveis.
Pela região se espalham instituições voltadas para a população em vulnerabilidade social. Há a Pastoral Carcerária, braço da Igreja Católica; o Centro de Referência da População de Rua, ligado à prefeitura; o Centro Integrado de Atendimento à Mulher, também da prefeitura, e variadas comunidades evangélicas, como o Centro Social da Igreja Batista da Lagoinha, liderada pela família Valadão. A primeira das atuais 700 sedes da congregação de Valadão, hoje um megatemplo com capacidade para mais de 5 mil pessoas, funciona a alguns quarteirões da Polícia Penal, bem como a modesta Missão Batista Cristolândia, que tem sede no bairro e atua também nas penitenciárias. Ainda próximo à Lagoinha, há um albergue onde o pernoite é sem custo e um restaurante popular com refeições gratuitas para aqueles cadastrados no CadÚnico do governo federal.
- O Complexo da Lagoinha, fora do centro de BH, aos poucos se transformou em depósito de ex-presos
- O Complexo da Lagoinha, fora do centro de BH, aos poucos se transformou em depósito de ex-presos
- O Complexo da Lagoinha, fora do centro de BH, aos poucos se transformou em depósito de ex-presos
Descendo a ladeira, um quarteirão depois de onde Daniel foi solto, estão os viadutos, onde, em barracas improvisadas, colchões ao relento ou no próprio chão, vivem centenas de pessoas. Ladeira acima, entre casarões decadentes e sobrados abandonados, está a “boca”, onde parte dessa população, num sobe e desce incessante, busca cocaína e crack.
“Aqui não tem nada de diferente do presídio. É a mesma coisa. Porém você pode ir de um lugar pro outro”, resume Daniel. Em seu mês e meio vivendo na Lagoinha, viu outros egressos do sistema penal recorrerem ao furto para comprar drogas, o que ele atribui à precariedade com que foram “devolvidos” à cidade. Um deles, conhecido seu, conta Daniel, voltou a ser preso três dias depois de solto. “Ressocializar, reinserir, reeducar alguém no presídio… isso não existe”, lamenta.
Seu plano é correr atrás dos documentos, arranjar um emprego e sair da rua. “Tô tentando sobreviver. Mas a verdade é que a rua é o purgatório onde você faz estágio pra voltar pro inferno da prisão”, desabafa.
Caos organizado
Entre fuligem, lixo e resquícios de fogueiras, a Lagoinha tem suas regras.
Nas duas praças adjacentes à avenida Antônio Carlos, cortadas pelos viadutos imensos, vivem os mais vulneráveis: muitos com graves problemas de saúde física e mental, outros em idade avançada, e quase ninguém com perspectivas de futuro; o consumo de drogas é generalizado, e a chance de reincidência no crime é alta.
Numa das praças há uma única torneira, onde, em fila indiana, cada um aguarda a vez de tomar banho. Noutra praça, de frente para a Além Paraíba, funciona o “shopping da rua”, no qual os moradores comercializam, a preços baixíssimos – dois, três, cinco reais – os agasalhos que recebem em doação. O dinheiro, em geral, é usado para comprar drogas.
No canteiro central do viaduto, cercado pelo barulho intenso do tráfego, fica a “maloca”. Quem dorme na maloca ou já largou ou pretende se livrar do crack, e o consumo da droga é proibido pelos moradores. Quando um desavisado acende uma latinha improvisada em cachimbo, alguém logo grita: “Na humildade, aí, vai fumar em outro lugar!”
São aproximadamente 50 barracas, onde vivem ao menos 100 pessoas. O furto e o ócio não são bem vistos na maloca: durante o dia, praticamente todos dedicam-se a catar materiais recicláveis, correr atrás de documentos e procurar emprego.
Nilo Júnior, 38 anos, morava na maloca havia uma semana quando a Pública passou pela Lagoinha. Também natural de Teófilo Otoni, no Norte de Minas, ele se mudou para BH depois que rompeu com a família por causa de seus problemas com drogas. Roubou uma televisão e foi pego pela polícia. Réu primário, passou seis meses num presídio, sem visitas. “Tempo suficiente para eu não querer voltar pra lá nunca mais”, diz.
Antes de ser preso, Nilo teve diversos empregos. Tocou percussão numa banda de axé (“que já se apresentou até em Salvador”, conta), trabalhou num supermercado e foi soldador, sua última função antes da condenação. Assim que foi solto, soube que a sua função na empresa não havia sido ocupada e foi até lá pedir o emprego de volta. Deu com a cara na porta. “Tinha a minha vaga lá ainda. Quer dizer, tinha a vaga daquele rapaz sem problemas com a justiça. Agora já não tem lugar pra mim”.
Desde que foi preso, Nilo decidiu não mais usar drogas. Ao chegar à Lagoinha, soube que na maloca havia mais gente perseguindo a sobriedade e se apresentou aos moradores, pleiteando um lugar. Foi acolhido: “Me contaram onde fazer os cadastros, e graças a Deus tô me alimentando. Tomo café da manhã na Pastoral Carcerária, almoço no restaurante popular, tem as doações. Mas é muito difícil”, conta. As três primeiras noites passou desperto e apavorado, “estudando a situação”.
Na segunda vez em que encontrei Nilo, quatro dias depois, ele já dormia melhor e estava animado: tinha uma entrevista de emprego para outra vaga de soldador. “Não falei que tenho passagem pela prisão, do contrário sei que vou tomar um não”, admite. Perguntei o que aconteceria se os empregadores quisessem assinar a sua carteira, pedindo-lhe comprovantes de bons antecedentes. “Aí lascou”, respondeu.
“Mas estou bem otimista”, disse. Se conseguir o emprego, planeja alugar um barraco na Pedreira Prado Lopes, favela próxima à Lagoinha. Despediu-se sorridente, com uma frase que ouviu da avó, que por sua vez a atribuía a Charles Chaplin: “O homem não se mede pelas vezes que cai, mas sim pela elegância com que se levanta”.
Enxugando gelo
A Lagoinha é circundada por ferros-velhos alimentados por catadores de materiais recicláveis que, em sua maioria, são os próprios moradores em situação de rua, muitos deles ex-detentos. Ali coexistem três grupos nitidamente distintos, explica o paraguaio Valter Benítez, 38 anos, funcionário do projeto Empreendendo Vidas, que oferece opções de trabalho e renda para a população de rua.
Há os catadores eventuais, interessados em conseguir dinheiro para comprar drogas; os profissionalizados, com clientes certos e renda fixa; e os cooperados, que, organizados coletivamente, negociam melhores preços para os materiais coletados e tentam deixar a rua, transferindo-se para moradias de aluguel social na parte alta da Lagoinha, em prédios outrora abandonados reformados pela prefeitura. O valor médio arrecadado por dia é R$ 30, e o aluguel social sai por volta de R$ 350 mensais.
Instituições religiosas e aparelhos estatais também se espalham pelo lugar. Ajudam a “enxugar o gelo” do caos urbano na região, diz Cirlene Lima, 59, membro do Conselho de Direitos Humanos de Minas Gerais e uma das coordenadoras da Pastoral Carcerária, que funciona na mesma rua da Polícia Penal. “Para cada pessoa que conseguimos ajudar, outras dez ficam sem auxílio”, estima.
A Pastoral ajuda os atendidos a tirar documentos e buscar emprego, oferece apoio psicológico, alimentos e agasalhos, além de ajudar os familiares nos complicados trâmites para as visitas aos presos. A maioria dos que buscam ajuda, a exemplo de Daniel e Nilo, é composta por egressos do sistema prisional cujas famílias não residem na capital.
“A Lei de Execução Penal é clara: a pessoa tem de pagar a pena perto de seus familiares para poder se ressocializar. Porque fazer alguém do Norte de Minas cumprir pena na Grande BH? Com exceção dos que pertencem a alguma facção, não faz sentido tirá-lo de perto da família”, defende Cirlene. Uma vez que o apenado é transferido ou preso longe de sua cidade, explica ela, a perda dos laços familiares torna-se regra, não exceção. “Quem está no sistema prisional? O pobre. A maioria das mães não tem dinheiro nem para comprar o kit higiene para o filho preso, quanto mais para pagar uma passagem intermunicipal.”
Embora fundamentais para a sobrevivência de quem vive nas ruas, instituições como a Pastoral Carcerária são incapazes de reverter o quadro de deterioração social na região. Desde que começou a trabalhar na Lagoinha, há duas décadas, Cirlene só viu a situação piorar; não por coincidência, avalia ela, esse período é o mesmo do crescimento explosivo do encarceramento no país: no ano de 2000, mais de 232 mil pessoas estavam presas no Brasil, população que saltou para 832 mil em 2022. Os números constam no Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Sem uma política pública que leve o egresso de volta à família, não haverá solução, conclui a coordenadora da Pastoral: “O primeiro passo do Estado deveria ser mapear: quem é quem, onde está vivendo, de onde é, como veio parar aqui. Do contrário, caminhamos para o colapso, que já está próximo. Vidas estão sendo perdidas na rua”.
Segunda chance
Júlio Souza, que passou sete dos seus 48 anos preso em unidades prisionais da Grande BH, conhece bem as ruas da Lagoinha. Tudo começou, conta, quando “um amigo, entre aspas”, o apresentou ao crack. De adolescente com boas notas e carteira de trabalho assinada, tornou-se frequentador da Lagoinha e do entorno da rodoviária da capital, tomada por dependentes de drogas. Não tardou para que fosse preso por furto.
Diferente de tantos egressos em situação de rua, Júlio manteve um forte laço com a mãe, que mora em BH, na favela do Morro do Papagaio: “Ela nunca me abandonou. Mesmo eu falando que não precisava me visitar, ela sempre ia”. Ao ser solto, teve para onde ir.
“Toda vez que eu saía, pensava em mudar”, lembra. Os desafios eram muitos: perdeu uma entrevista de emprego por ter de dar explicações a policiais que, numa revista a caminho da empresa, viram seus antecedentes. Nas entrevistas de trabalho ouviu vários nãos. Para sustentar a dependência química, passou a vender drogas e foi preso de novo em 2006.
Saiu em 2011 e diz que três coisas contribuíram para que não voltasse a cometer crimes: a conversão ao cristianismo, os livros lidos no cárcere e a mãe. “Depois de dar muito murro em ponta de faca, me propus a mudar o pensamento dela em relação a mim”, diz.
Livre do crack, começou a trabalhar como professor, primeiro voluntariamente e depois contratado pela prefeitura, em projetos voltados à prevenção da criminalidade entre jovens e ações pela redução de danos com dependentes químicos. Atuava na Lagoinha, em missões da igreja Batista. Seu papel era “quebrar o gelo”: abordava usuários de drogas embaixo dos viadutos, propondo oficinas de arte. Se conseguia abertura, outras profissionais aproximavam-se – enfermeiras, psicólogas, assistentes sociais. “Quando me viam, ficavam mais à vontade para falar de seus medos e vivências”, explica.
Júlio tornou-se referência entre os egressos, que o procuram em busca de indicações de empregos, e foi escolhido para presidir a Associação de Moradores do Morro do Papagaio. Abriu um cursinho gratuito para quem quer tentar o Enem. Um dos beneficiados foi ele próprio: em 2022, Júlio ingressou no curso de Ciências Socioambientais na UFMG.
O passado no sistema prisional, porém, de novo barrou uma vitória. Júlio se candidatou a vereador de BH pela Rede, mas o Ministério Público entrou com uma ação pedindo que ele fosse barrado, pois Júlio não pagou a multa penal de R$ 800. Quando o detento cumpre a pena, ao ser solto, precisa pagar a multa penal. Quem não paga fica com pendências judiciais e tem alguns direitos barrados.
A multa prescreveu em 2013, mas Júlio ainda estava no período de oito anos de inelegibilidade determinados pela Lei da Ficha Limpa, e sua candidatura acabou indeferida. “O Estado sempre vai querer prejudicar quem passou pelo sistema”, resume. Em 2024, quando sua inelegibilidade já terá expirado, ele planeja se candidatar novamente. “É preciso ter confiança, porque uma hora dá certo. Mas se ninguém botar fé na pessoa, se ela não tiver uma segunda chance, aí fica difícil”.
Edição: Fernanda da Escóssia