Por Saul Leblon, em Carta Maior –
Não por acaso a Folha escondeu as fotos da apoteótica confluência entre essa lição e a receptividade da multidão reunida neste domingo no Cariri paraibano.
Quis o destino que um símbolo do maltratado sentido de pertencimento nacional ressurgisse na cena política do país no momento em que todas as demais reservas de esperança em nós mesmos são confiscadas e demolidas.
Inclua-se nessa montanha desordenada de ruínas nossos mais arraigados pilares de identidade e autoestima.
A destruição estratégica da Petrobrás, por certo.
Estamos falando daquela referência ferozmente contestada por uma elite que nunca tolerou a presença bem sucedida do interesse público em nossa história, na condição intrinsecamente popular de bem comum.
A luta pelo petróleo brasileiro fixou no imaginário nacional três anátemas aos olhos dos valores dominantes: ‘o Brasil pode, o Brasil sabe, o Brasil faz’.
É tudo o que o discurso atual das ‘reformas’ recusa na busca sôfrega de legitimidade para a agenda antinacional e antissocial que cavalga tendo a população e o interesse brasileiro como cavalgadura involuntária.
A entrega do pre-sal constitui subtração tão ou mais grave de lastro econômico, ideológico e político.
O pre-sal é o ‘Tiradentes’ do nosso tempo.
Sua força emancipadora se insurge contra as trancas, vetos, dogmas e interditos que guarnecem a fronteira da subordinação nacional à gula e à conveniência dos capitais globalizados.
Como um ‘Tiradentes’ estratégico, a ousada premissa de soberania na exploração dessa riqueza recebeu o tratamento dispensado aos amotinados coloniais.
Por crime de soberania nacional, o pre-sal foi condenado e está sendo picado e salgados em praça pública nos dias que correm.
No mesmo martírio fenece o derradeiro impulso industrializante capaz de reconectar a nação brasileira à ponta da revolução industrial do século XXI –a 4.0.
Outras apostas no país que ainda não somos, mas que poderíamos ser, completam a espinha dorsal da nação soterrada nesses escombros de esperanças desautorizadas e aspirações reprimidas.
Muezins proclamam diariamente o jejum das possibilidades nacionais.
A sociedade brasileira, seus direitos, suas demandas, tornou-se um estorvo aos mercados.
O Brasil é um insulto à livre empresa.
Urgências de carne e osso, de cimento e ferro são um atentado ao capital privado.
A Constituição de 1988 não cabe no equilíbrio fiscal.
O que está em marcha é um acerto de contas histórico.
O país assiste à conjura do filé mignon interposta à reivindicação impossível da vasta maioria do povo brasileiro.
Qual seja: fazer parte da nação.
É nesse horizonte marmorizado de barreiras e comportas estritamente vigiadas pelos foscais midiáticos que um jorro iconoclasta irrompe no horizonte geográfico e político, com força pedagógica para sacudir a subjetividade brasileira.
A contrapelo do relevo e da ideologia, ele se lança por um canal de 217 kms, construído entre Pernambuco e a Paraíba, para levar as águas do velho Chico ao sertão ressequido por uma das mais longas e exasperantes estiagens já vividas pelo Nordeste brasileiro, que se arrasta por cinco anos.
O que está em jogo não é apenas a simbologia dessa correnteza republicana.
Essa que une o país pobre ao rico, o úmido ao semi-árido, para beneficiar 12 milhões de vidas sedentas.
É mais que isso.
O ponto é que a integração solidária que Lula e Dilma materializaram, secularmente cogitada e postergada desde Pedro II, jamais seria prioridade da lógica dos livres mercados, ora incensada pelos ventríloquos que tomaram de assalto o Estado brasileiro para aleijá-lo.
Os senhores da nação e da opinião por certo subestimaram o impacto simbólico da conclusão do canal leste da transposição nesse momento.
Quando se aperceberam, as águas já corriam incontroláveis para a apoteose vista neste domingo em Monteiro, na Paraíba.
As imagens colhidas do encontro entre o rio, os sertanejos e Lula são espantosas, mesmo para o histórico regional de empatia entre o povo e o ex-presidente.
Veículos como a Folha passam recibo ao sonegar a informação visual a seus leitores: o jornal da família Frias não publicou uma única foto aberta multidão, em si, a informação política mais relevante do fim de semana e, talvez, da semana.
O efeito histórico, porém, está escrito para sempre em pedra e cal.
Ele escancara aos olhos da nação um paradoxo irreprimível.
Em meios aos escombros do Estado e da sonegada capacidade de investimento nacional, salta a referência de uma obra pública, pactuada nacionalmente, ordenada pelo planejamento democrático e elevada à condição de prioridade estratégica do Estado, para mudar o sentido da vida, da economia e do universo por onde passa.
Sobretudo, realça desse jorro a certeza de que nenhum interesse privado o conduziria até onde chegou.
Não pelos desafios graúdos da engenharia hidráulica.
Mas pelo requisito político que cimenta a obra.
É devastador.
E é isso que é preciso abafar, como faz o jornal dos Frias, porque o conjunto –obra e sua dimensão política– sacode a prostração e o descrédito para abrir uma outra possibilidade ao passo seguinte da nação.
O que se teme é a sinapse capaz de associar o mesmo molde às demais encruzilhadas seculares que asfixiam a sofrida gente brasileira.
Essa é a abrangência épica que irradia das águas do velho Chico: o rio ensina um caminho à nação.
Os meios de comunicação poderão minimiza-lo em registros protocolares, sucedidos de horas e páginas de depreciação.
Contra isso Lula se vacinou domingo: ‘A água está aqui; agora cobrem –disse enfaticamente—‘cobrem as verbas do governo federal para que ela chegue à torneira das casas…’
Eles tentarão minimizar.
Mas a imagem épica da seca sendo rasgada pelo jorro improvável ressurgirá demolidora nas disputas eleitorais como o contraponto fascinante de uma outra rota de futuro para a construção interrompida de que falava Celso Furtado.
Não por acaso, em dezembro de 2004, Lula publicou um artigo em que fixava essa potência histórica da transposição com o nome do economista.
Ele reservou ao paraibano de Pombal, decano dos economistas brasileiros, referência mundial da luta contra o subdesenvolvimento, o batismo do canal leste do São Francisco, que um dia receberá a honra de ostentar o nome de ‘Celso Furtado’.
Quem sabe a partir da eleição de 2018…
Rememorando o amigo e conselheiro falecido um mês antes, dizia Lula naquele artigo: ‘ o subdesenvolvimento não é uma etapa necessária e incontornável do desenvolvimento, mas uma engrenagem regressiva, assentada na aliança perversa entre estruturas injustas e assimetrias internacionais’.
E alertava: ‘esse ensinamento de Celso Furtado resume cinco séculos de história e projeta uma agenda para o futuro. Mantidas essas relações, o acelerador da riqueza aciona o freio da distribuição e aprofunda a desigualdade, perpetuando a injustiça’.
Desarmar essa engrenagem é a própria agenda do desenvolvimento, sublinhava o texto.
A atualidade é evidente quando se aterroriza a nação para coagi-la a entregar seu destino à ação desordenada dos mercados.
A urgente ampliação da margem de autonomia do país para recuperar o comando do seu destino – e assim estabilizar seu investimento– era uma das obsessões de Celso Furtado.
Não se faz isso sem Estado atuante, sem projeto de desenvolvimento sólido e sem futuro democraticamente pactuado e sustentado por organização popular.
Furtado foi premonitório na reflexão dessas interações intrínsecas à luta pelo desenvolvimento, ou ‘contra o subdesenvolvimento’, como preferia hierarquizar.
Sua voz ecoa densa atualidade.
Um país não se transforma em nação soberana e justa, dizia o autor de ‘Formação Econômica do Brasil’, se o seu povo não assumir a frente nas provas cruciais da sua história.
Aquelas que funcionam como um clarão no discernimento coletivo.
A despolitização da agenda do desenvolvimento – decorrente da apartação advertida por Furtado– explica boa parte da encruzilhada atual.
Essa na qual a nação é refém, por exemplo, de uma dívida pública, que não é outra coisa, adverte Luiz Gonzaga Belluzzo, senão a exorbitância da riqueza privada sobre os recursos da nação.
A distorção, uma das provas cruciais, não será corrigida se não for sustentada pelo escrutínio popular.
A anemia estrutural da economia brasileira que hoje se tenta corrigir com arrocho sobre o povo pobre, foi construída assim, em décadas de sangria do público para o privado, e está escriturada em uma dívida cujo serviço e amortização consome cerca de 40% do orçamento.
Em nome desse torniquete saturado montou-se o presente ardil de rendição aos ajustes para impor às famílias assalariadas uma moratória de direitos sociais, trabalhistas e previdenciários por vinte anos.
Congela-se um desequilíbrio falsificando-se a matriz das suas variáveis.
A partir desse simulacro extrai-se a iminência de uma calamidade.
Cujo tratamento é a rendição incondicional aos ditames dos mercados sem lei.
A obra do São Francisco é uma insurgência de incalculável poder aliciador contra esse desatino, que se escora na ardilosa associação entre iniciativa estatal para o desenvolvimento e corrupção.
Eis a caixa de Pandora que explica todos os males do Brasil, replica diuturnamente o martelete da mídia embarcada.
Nas mãos da capatazia de Curitiba é mais que isso.
É um veredito de interdição à escolha das urnas.
A suposição de que existe um mercado puro –como o Deus com quem o procurador Dallagnol se comunica– enfrenta, no entanto, colisões apreciáveis com a realidade capitalista no século XXI.
Vivemos um tempo em que a supremacia das corporações oligopolistas e a deriva da sociedade e do seu desenvolvimento não são realidades antagônicas.
Antes, exprimem uma racionalidade destrutiva, impossível de se combater sem uma intervenção credenciada do Estado no processo de desenvolvimento.
Aos ingênuos e espertos que elegem o ‘gigantismo estatal’ como o demônio a ser calcinado na fornalha de Curitiba, cabe esclarecer: a tragédia que devora o nosso tempo é de natureza justamente oposta.
No capitalismo, hoje, o cartel planeja a sociedade.
Esse é o fato histórico.
Que nos coloca diante do custo de um ‘intervencionismo’ às avessas.
Aquele impermeável às urnas, ao debate e ao consenso das maiorias.
Com as consequências evidenciadas no ciclo de privatizações dos anos 90 no Brasil, por exemplo, reiteradas agora, pelo agenda do desmonte em marcha.
A saber: um Estado ainda mais fraco; um mercado desregulado ainda mais intempestivo; governantes adicionalmente reféns de interesses particularistas e corruptos, lambança desenfreada e passivos de cidadania exacerbados.
Pior que tudo.
Se consumada, essa recidiva cristalizará a virtual impossibilidade de o Estado brasileiro coordenar a formação dos grandes fundos solicitados pelo agigantamento dos projetos de infraestrutura em nosso tempo.
Indispensáveis à mitigação das secas, por exemplo, agravadas pelo desequilíbrio climático extremo, como se constata no cenário dramático do semiárido nordestino atualmente.
Mas também para o atendimento da saúde pública, da educação de qualidade, da urbanização convergente
Etc.
Essa agregação de grandes massas de capitais tem que ser feita por alguém.
Que ela ocorra por meio de cartéis dilapidadores ou se dê pela subordinação ao planejamento democrático do Estado, eis a disjuntiva crucial que atualiza a obsessão de Celso Furtado pela conquista de autonomia nas decisões do desenvolvimento.
Boa parte do desafio brasileiro hoje gira em torno desse nó górdio: quem vai organizar o passo seguinte da nação inconclusa e da cidadania sonegada?
A repactuação democrática do desenvolvimento, ou os apetites irrefletidos dos mercados?
Definitivamente, esse não é um caso de polícia.
A mitologia difundida pelo jornalismo rastaquera alardeia que a purga de Moro fará emergir um capitalismo saneado, capaz de assumir as tarefas e desafios brasileiros no século XXI.
Doce enganação.
O rebote fulminante da desigualdade hoje no Brasil, depois de 22 anos de recuo sistemáticos, demonstra que a panaceia dos livres mercados é apenas um álibi de coisa pior.
O país real e o seu desenvolvimento continuam à espera de um jorro político que devolva à urna, ao Estado e ao planejamento democrático o comando do seu destino.
A inflexão subversiva do São Francisco rumo ao Cariri carrega a força das correntezas com poder de sacudir a fatalidade da narrativa dominante.
Contra ela ergue-se agora uma pedagogia de materialidade fluvial: um rio ensina o caminho ao país. Não por acaso a Folha escondeu as fotos da apoteótica confluência entre essa lição e a receptividade da multidão espantosa reunida neste domingo histórico em Monteiro, no Cariri paraibano.