E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, nos leva ao cinema mediante um lírico texto (mais um). Durante uns dias, César esteve afastado desta coluna para resolver, a contento, questões de saúde, e agora volta com tudo. Tudo de bom nesta bela crônica que nos dá uma vontade danada de ver o filme loguinho.
PS. Normalmente, a crônica do César é publicada na quinta ou sexta-feira, mas a saudade foi tão grande que resolvi publicar nesta segunda, primeiro dia de julho de 2024.
Vamos ao texto e vá atrás do filme:
“Caro Washington, voltei ao batente das teclas. Fazer o quê? É a vida de artista, do cronista. Neste texto de retomada, falo de um filme brasileiro disponível na Netflix. É o “Pacarrete” (Dir. Allan Deberton, 2020), que tem como protagonista a atriz Marcélia Cartaxo, que conhecia do filme “A hora da Estrela” (Dir. Susana Amaral, 1985). Se este último é a história de uma migrante nos grandes centros urbanos, aquele se passa em uma cidade do interior do Ceará chamada Russas.
Gostei tanto do filme que resolvi enviar uma carta pelo messenger do Instagram para o Allan Deberton, diretor do filme. Lendo assim, até parece que eu sou um cara super antenado com as redes sociais. Não sou, nem sei se dou para o gasto. Era preciso falar do impacto emocional que o filme me proporcionou.
Para ser sucinto, minha mãe ainda fala exatamente do jeito que o pessoal do filme. Minha mãe poderia ter sido consultora de prosódia da fita. E não é só a fala mas também os gestos que acompanham cada palavra que a minha mãe diz são semelhantes.
Enfim, enfim, houve bastante identificação. Contudo, “Pacarrete” vale a pena ser visto por outros ângulos, talvez menos pessoais. Pelo menos como eu o entendi, o filme fala muito do envelhecimento e talvez até de etarismo. Porque o corpo envelhece, é fato, a gente é feito para acabar mesmo, não há botox que segure.
Ainda assim, a gente sonha e quer realizar os sonhos mesmo que apenas na cabeça da gente.
Só isso já renderia um grande filme. Mas ainda de quebra tem um casario, um mobiliário que, procurando bem, a gente é capaz de encontrar em lugares como Paquetá.
Casas de paredes coladas umas as outras sem jardim na frente; corredores compridos com entradas para o quarto com um quintal lá no fundo. Tem um pouco de saudosismo, claro, mas também tem um aspecto central: as habitações têm personalidade, têm história.
Com essas reminiscências todas, senti até o cheirinho do colchão de palha (super desconfortável, por sinal) do quarto da minha tia Betânia lá no bairro de Vergel do Lago, Maceió, Alagoas. Quarenta anos para trás em um piscar de olhos. E vi minha vó Maria Patroa limpar o peixe com a faquinha amolada sob o olhar astuto, de quem não quer nada, do gato da casa. Eu já bebi água fresca da moringa. Agora não bebo mais, não.
Vamos à carta para o diretor de “Pacarrete” , o Allan Deberton.
Beija-Flor, 30 de junho de 2024.
Caro Allan Deberton,
(Para Dioner Sotero Batista, minha mãe, minha Pacarrete!)
Acabo de assistir ao “Pacarrete” pela Netflix. É um filme que tem coisas lindas, emocionantes. Fico feliz por ter tido oportunidade de assisti-lo.
Não dá nem para falar da atuação da Marcélia Cartaxo, que é covardia: um acontecimento no tom de voz, no tom do corpo, em tudo. “Pacarrete”, além de tudo, nos remete à história de Marcélia, dessa extraordinária atriz a quem devemos muitas homenagens.
O filme tem uma pegada feminina muito presente, muito acentuada. Não à toa, é um filme que fala de companheirismo, desavenças, rixas, desejos sob a ótica da mulher.
E é um filme sobre a velhice, sobre a realização e não realização do que a gente se programa para fazer na vida – tem coisa que a gente ensaia, ensaia e nem sempre sai a contento, quando sai. É a tal do contraste entre expectativa versus realidade.
De quando em quando a gente percebe que muitos de nós foram jogados para escanteio por supostamente terem perdido o pulso do tempo, da contemporaneidade, do que está rolando.
Somos todos um pouco Pacarrete neste quesito. O que querem de nós na velhice?
No fundo, na lógica do filme as pessoas não tratam Pacarrete como uma pessoa digna de respeito e consideração. Ela leva um pouco de tempo para admitir para si mesma tal fato.
Ela diz uma coisa belíssima: “Eles não fazem mais pessoa de mim!”. Que frase poderosa! Não fazer pessoa do outro é ultrajá-lo, tratá-lo como objeto de descarte, de pena, de desprezo. Em suma, é tratá-la como alguém sem desejo.
O filme foi capaz de suscitar em mim lembranças da fala, do casario, do mobiliário tipicamente nordestinos das casas de nordestinos que frequentei ao longo das décadas de 1970 e 1980. Casas simples, decerto, mas que tinham uma personalidade bem marcante.
Sou filho de alagoanos. Alguma coisa na edição de arte (se é que é assim o nome técnico) me fez lembrar daquelas casas compridas com o quintal no fundo da casa. A ideia no final de fazer daquele corredor uma espécie de entrada de palco foi estupenda. Explica-se por que Pacarrete tem tanto zelo pela calçada.
Enquanto eu assistia ao filme, pensei que ela deixaria por lá a marca de seu pé no cimento fresco. Mas era outra coisa.
O filme conta com uma trilha sonora bem feliz (e com os ruídos também) e com uma iluminação muito afinada para a composição do estado de ânimo da personagem. E obviamente, com o figurino um tanto espalhafatoso que casa bem com o tom de voz empregado, que é estridente.
Em suma, “Pacarrete” é bom pacas. E quem discordar é um fela de uma égua.
Fico por aqui. Agora eu irei tomar meu remedinho para o esquecimento.
Um abraço,
Cícero.”
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.