Uma Estranha Democracia: a velha retórica da direita brasileira

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Por Mariana Bicalho, Justificando – 

Ironicamente, enquanto arrumava meu quarto na manhã de terça-feira, revi um livro que havia comprado há aproximadamente dois anos em um sebo no Edifício Maletta, em Belo Horizonte. Lembro que esperava por um amigo para uma reunião e, na minha compulsão por livros, comprei o intitulado “O Brasil da Abertura – De 1974 à Constituinte” de Marly Rodrigues, que tinha em suas primeiras páginas a citação da música Podres Poderes de Caetano Veloso[1].

O livro se inicia com o capítulo “Uma estranha democracia”, contextualizando o processo político brasileiro batizado como abertura, iniciado em 1974, visando a democratização do país. O processo, almejava se distanciar dos acontecimentos violentos que assombravam o país desde o golpe de 1964, principalmente em virtude do Ato Institucional nº 5, AI-5.




O AI-5, como todos sabem, foi uma resposta aos movimentos sociais contrários à ditadura, que cresceram nos anos de 1964 a 1968. Em contrapartida,

As manifestações culturais – especialmente o teatro, a música e a literatura – passaram a ser um campo importante para o protesto dos liberais e da esquerda moderada.

A esquerda radical escolheu a resistência armada, as guerrilhas urbanas e rural, reprimidas por completo até 1973. Uma outra vertente da resistência de esquerda – na qual se destacaram as Comunidades Eclesiais de Base (CEB), que congregavam militantes católicos – privilegiou a lenta reorganização dos movimentos sociais, tendo por núcleo os locais de trabalho e moradia.

No final da década de 70, a experiência acumulada nos longos anos de resistência possibilitou o retorno dos movimentos sociais, importante fator de pressão durante a “abertura”.

Submetida ao rígido controle do governo e repleta de medidas ambíguas e contraditórias, a “abertura” foi, apesar de tudo, um momento importante de redefinições das representações partidárias e das regras do jogo político no Brasil contemporâneo”.” (RODRIGUES, pg. 4).

Durante o “milagre econômico” de 1967, a TV, a imprensa escrita e produção de adesivos foram essenciais para criar a “potência brasileira”.

“O “milagre” foi fruto do modelo adotado pelos governos militares que consistia no crescente condicionamento do desenvolvimento brasileiro às exigências dos capitais internacionais. O governo brasileiro oferecia vantagens fiscais e financeiras para as empresas monopolistas internacionais que quisessem instalar-se no País. Esses monopólios, dominando avançadas técnicas de produção, aproveitavam a mão-de-obra nacional, de baixo custo.

O modelo contava também com a ativa participação do Estado, que monopolizava serviços básicos, como a energia e comunicações. A manutenção do modelo exigia ainda que o Estado exercesse um rígido controle dos salários e contivesse as reivindicações dos trabalhadores e as manifestações políticas de esquerda (…)

O acelerado desenvolvimento do capitalismo deu largos passos para integrar o Brasil na sociedade no consumo. Porém, o privilégio de desfrutar essa condição restringiu-se às camadas médias e altas da população (…)” (RODRIGUES, pg. 5)

Por volta do ano de 1974 o grande milagre econômico começou a desmoronar

“O “milagre”, que até então mantivera o apoio da burguesia ao regime ditatorial, mostrava os primeiros sinais de esgotamento. No plano interno, a própria rapidez do desenvolvimento econômico provocava a escassez de alguns insumos; além disso, o mercado – em parte por causa dos baixos salários – era restrito.

Por outro lado, a retratação da economia mundial afeta diretamente nações como o Brasil – que pela posição que ocupam no conjunto dos países capitalistas dependem de importações, empréstimos e investimentos externos, além das exportações de produtos primários.

A queda do crescimento econômico gerou críticas e discordâncias, por parte dos empresários, acerca do modelo de desenvolvimento adotado pelos governos militares. Uma parte da burguesia passou a reivindicar maior participação nas decisões políticas, o que exigiria o retorno da democracia – palavra que, no Brasil, tem contornos fluidos e, portanto, pode se adaptar a qualquer situação.” (RODRIGUES, pg. 6)

Em 1978, as greves operárias e as representações estudantis começaram a retornar ao cenário político.

“As reais ameaças à “abertura” partiram, porém, dos setores da extrema direita, formada por um grupo de empresários e por militares. Os primeiros, desiludidos com a falência do “milagre”, passaram a atacar o papel das estatais e a disputar com elas os benefícios governamentais. Com isso conseguiram fazer com que a discussão sobre a crise econômica simplesmente ignorasse o rebaixamento crescente do nível de vida dos trabalhadores.

Os militares, por sua vez, procuraram evidenciar sua força e desmoralizar publicamente a autoridade do presente. Nos quarteis, os oficiais promoviam campanhas contra a abertura; no final do mandato Geisel chegaram a propor um candidato próprio à sucessão.

Os militantes diretamente ligados aos órgãos de segurança, por meio dos quais o governo liquidara as oposições mais radicais, voltaram a praticar torturas nas dependências do DOI-CODI, justificando como suicídio a morte das vítimas – entre as quais o jornalista Wladimir Herzog, em 1975, o operário Manuel Fiel Filho, um ano depois, cujas mortes levaram ao afastamento do comandante do II Exército.” (RODRIGUES, pg. 8)

Neste contexto, os trabalhadores fizeram inúmeras reivindicações, que tinham como pauta principal o salário, a estabilidade do emprego e a representação dos líderes sindicais.

“No momento em que a tônica do discurso dos homens públicos era a liberalização do regime, a atitude do governo contribuiu para fortalecer o apoio e a solidariedade entre os trabalhadores e outros setores sociais da classe média expressos durante a greve dos metalúrgicos de 1980 e no decorrer das discussões que resultaram na formação do Partido dos Trabalhadores (PT), liderado por militantes sindicais.

Partido de tendência socialista, que propunha democracia interna a partir das bases e participação nos movimentos sociais (…).

Sem perda de tempo, membros do Exército e grupos paramilitares, como o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), iniciaram atentados contra simpatizantes da esquerda – sequestros e explosão de bombas em entidades, residências de militantes, bancas de jornal, com vítimas fatais e vários feridos (…).

A “abertura” implicou a reforma de algumas instituições. As leis que garantiam a centralização de poderes na figura do presidente da República foram gradativamente substituídas ou amenizadas. A decisão sobre as novas regras do jogo político ficou, porém, circunscritas ao Executivo e ao Legislativo, onde a maioria representava os seguimentos da burguesia. Dessa forma, o governo conseguiu manter isoladas as opiniões divergentes e realizar a “abertura” sem perder o controle do conjunto da sociedade, isto é, dentro da “ordem”.” (RODRIGUES, pg. 10)

Os trechos reproduzidos acima me fizeram ler o passado, respirando o presente. A semelhança dos fatos, especialmente a crise econômica mundial, as retaliações à Presidenta da República, a incansável busca das elites em retirar os direitos dos trabalhadores em prol do desenvolvimento econômico a qualquer custo e os constantes ataques aos militantes da esquerda, bem como a criminalização dos movimentos sociais, nos mostram a volta de um passado não muito distante.

Assim, os objetivos dos grandes empresários corporalizados pelos partidos de direita do Brasil, continuam acobertados pelo discurso da ineficiência do Estado e da corrupção dos governantes

“(…) o “toque de Midas” dessa ideologia, que explicará sua adesão popular, é a associação, efetuada “por baixo do pano” e sem alarde, entre mercado e sociedade como um todo, nos “convidando” a sentir tão virtuosos, puros e imaculados como o mercado. A partir daí, como a “recompensa narcísica” é o aspecto decisivo, a associação é tornada “efetiva” e, em grande medida, infensa à crítica racional. É precisamente este aspecto que permite a “adesão popular” de setores que não tem nada a ganhar com a “mercantilização” da sociedade como um todo. Desse modo, os partidos doutrinariamente liberais do Brasil – ainda que todos os partidos sem exceção estejam submetidos à sua hegemonia -, que representam interesses particulares ao demonizar a intervenção estatal como sempre ineficiente e corrupta.

É a partir desse raciocínio que o tema da corrupção política passa a ser um dos assuntos mais centrais e recorrentes do debate acadêmico e político brasileiro. O que está em jogo, no entanto, não é a melhoria do combate a corrupção por meio do melhor aparelhamento dos órgãos de controle. O que existe é uma dramatização da oposição mercado (virtuoso) e Estado (corrupto) construída como uma suposta evidencia da singularidade histórica e cultural brasileira. “(SOUZA, pg. 33)

No momento em que a elite brasileira usa dos velhos artifícios, a esquerda precisa se reinventar. É necessário que as Universidades voltem a ser centros de discussões políticas e que as militâncias continuem tomando as redes sociais. As manifestações do dia 31 de março mostraram que a história não pode ser guiada pelos interesses de 1% da população, as crises econômicas não podem ser pagas pelos trabalhadores. Esta estúpida retórica não poderá se prolongar “por mais zil anos”.

Mariana Bicalho é graduanda do Curso de Direito da Faculdade Milton Campos em Nova Lima, Minas Gerais. Bolsista de Iniciação Científica pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com ênfase em Direito, Internet e Sociedade. Monitora de Sociologia.

RODRIGUES, Marly. O Brasil da abertura: de 1974 à Constituinte/ Marly Rodrigues; coordenação Maria Helena Simões Paes. – São Paulo: Atual, 1990. – (História em documentos);
SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite/ Jessé Souza. – São Paulo: LeYa, 2015.
[1] “Enquanto os homens exercem seus podres poderes, morrer e matar de fome, de raiva, de sede, São tantas vezes gestos naturais”. Trecho da canção Podres Poderes de Caetano Veloso.

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