Uma execução e as lutas que seguem

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Por Gustavo Noronha do Sul 21,  em Brasil Debate – 

O golpe é um conjunto de mudanças tão brutais que é preciso eliminar quem o critique e tenha cara de povo. O austericídio desmonta toda a política de proteção social. Se a liderança contra é mulher preta da favela, o recado é claro: não se ergam

“A história de todas as sociedades até o presente é a história das lutas de classes.”

(Marx e Engels, Manifesto do Partido Comunista)

Todo mundo conhece o conceito de luta de classes imortalizado por Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista. Muitos supõem esta ideia ultrapassada e propõem desde uma conciliação aberta entre as classes até um convívio harmônico entre elas devido a uma alegada interdependência, entre outras visões. Entretanto, se para o momento histórico que Marx e Engels escreveram haveria a possibilidade de falar em luta de classes, hoje há que se afirmar o massacre de classe. Na sociedade capitalista de hoje só tombam os que defendem as classes subalternas.

A execução da vereadora do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), mulher, negra, favelada, bissexual, militante dos direitos humanos, defensora do andar de baixo, não apenas evidencia isto como sinaliza os tempos ainda mais duros que virão. Marielle lutava contra toda a forma de violência, inclusive a do Estado e foi morta justamente por aqueles que ganham com esta violência. Marielle se posicionava firmemente contra a intervenção militar no Rio de Janeiro.




A confirmação de que a munição provém de lote originalmente comprado pela Polícia Federal mostra inclusive uma responsabilidade do próprio Estado na execução. Aliás, as características do assassinato da vereadora mostram que não foi a violência cotidiana que assola o Rio de Janeiro que a matou, a forma como ocorreu requer no mínimo um planejamento detalhado e uma perícia digna de quem foi treinado pelo Estado.

A morte de Marielle é mais um capítulo da contínua guerra contra os pobres empreendida pelo 1% que com apoio da mídia inebria parte dos 99%. Uma guerra que vitima anualmente mais de 60 mil pessoas no país, na maior parte, jovens, pobres, pardos ou negros e das periferias urbanas. Desde o golpe, só no campo conflagrado desse Brasil, mais de 100 lutadores e lutadoras foram abatidos. No último dia 12, foi executado Paulo Sérgio Almeida Nascimento, um dos líderes comunitários da Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia (Cainquiama), que denunciava crimes ambientais em Barcarena provocados pelo vazamento de rejeitos de bauxita vindos da barragem da mineradora Hydro, empresa norueguesa instalada na região. De acordo com a Anistia Internacional, o Brasil é campeão latino-americano de assassinatos de ativistas de direitos humanos.

A guerra contra os pobres tem múltiplas faces. Os impactos da Emenda Constitucional nº 95 transcendem os limites do absurdo, no orçamento de 2018 nenhuma área foi poupada dos cortes o que implica um teto de gastos ainda mais baixo do que o antes imaginado, um desmonte total das políticas públicas que atendem prioritariamente o povo pobre deste país. É uma guerra que mata ao podar oportunidades quando desmonta o sistema de educação deixado a míngua sem recursos e quando só deixa o desemprego como alternativa ao povo. A guerra que mata de forma mais explícita quando, sem dinheiro, o SUS não é capaz de atender suas enormes demandas.

Os efeitos da contrarreforma trabalhista, com a terceirização irrestrita e a jornada intermitente, surgiram tão logo iniciou sua vigência com demissões em massas em universidades privadas para novas contratações sob a nova lei e anúncios de vagas que mal cobrem os custos de subsistência do trabalhador.

A contrarreforma da previdência, apesar de temporariamente interrompida, deve ser votada logo após as eleições. E com a intervenção impedindo mudanças constitucionais, a agenda das privatizações avança com a Eletrobras, mas pode chegar à Petrobras, à Caixa Econômica Federal e ao Banco do Brasil.

Curiosamente, a Rede Globo vem liderando o oligopólio midiático na narrativa de que a execução de Marielle foi um ataque à intervenção que ela criticava. A Globo teve o disparate de dizer que as manifestações que se espalharam pelo país em homenagem a ela e suas lutas são manifestações contra a violência. Narrativa prontamente endossada pelos agentes da ordem no Jornal Nacional, o presidente Michel Temer afirmou que

É um verdadeiro atentado ao estado de direito e um atentado à democracia. Por isso, aliás, nós decretamos a intervenção, para acabar com esse banditismo desenfreado que se instalou naquela cidade por força das organizações criminosas”.

Surpreendeu ainda o posicionamento do Senador Jorge Viana (PT-AC):

Eu queria uma intervenção no Brasil inteiro. Eu espero que isso possa ser um ponto final e a gente possa, todo o país unido, no sentido de enfrentar as milícias e o crime organizado porque houve um grande desafio nessa execução, eles desafiaram o estado brasileiro, desafiaram as autoridades policiais fazendo essa execução em pleno Centro do Rio de Janeiro”.

Já diria Shakespeare, “há algo de podre no Reino da Dinamarca”. Essas falas sinalizam algo que já estava no ar. Eliminar uma figura pública como Marielle é atacar a representatividade das mulheres, do povo preto e pobre, dos que se rebelam. Enquadrar sua morte fora do contexto da intervenção que ela criticava e as manifestações de solidariedade como protestos contra violência é um passo para uma intervenção generalizada no Brasil.

O golpe é um conjunto de mudanças tão brutais que é preciso eliminar quem o critique e tenha cara de povo. O austericídio desmonta toda a política pública de proteção social. Saúde, educação, transferências como Bolsa Família, tudo se desmonta. Se puderem dizer que seus críticos são homens intelectuais brancos de classe média, conseguem disfarçar por mais tempo seu caráter antipovo. Contudo, se uma mulher preta da favela tá na linha de frente, é mais difícil enganar as pessoas. É um recado claro, não se ergam.

A ditadura chilena foi a que mais matou na América do Sul justamente porque, para o povo aceitar duras medidas de austeridade, era preciso o uso constante do tacape. A intervenção militar no Rio abriu a porteira, a narrativa que a mídia quer dar à execução da Marielle é a senha para um Estado de Sítio ou mesmo uma intervenção nacional. Não se surpreendam que, para a manutenção do projeto em curso, transforme-se tudo numa grande crise nacional da segurança e que de alguma forma se retire o direito do povo escolher seus representantes em 2018.

De uma forma ou de outra, o que fica cada vez mais claro são os limites da luta institucional. Nem os parcos limites de uma vereança municipal são permitidos ao povo e evidenciam que só os que lutam pelas classes subalternas é que morrem. Nesta conjuntura, vale voltar a Lenin e perguntar: que fazer?

Crédito da foto da página inicial: Guilherme Santos/Sul21

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