Uma interpretação do naufrágio

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Roberto Amaral, cientista político, ex-ministro da Ciência e Tecnologia e ex-presidente do PSB 

Apenas 15 mil milionários brasileiros, nonada como estatística mas um mundo em termos de poder, titulares de salários superiores a R$ 8 milhões ao ano pagam o mesmo IRPF cobrado dos milhões de brasileiros que percebem R$ 6 mil anuais, ou seja, um rendimento mensal de R$ 500, muito abaixo, do valor do salário mínimo nacional, que é de R$ 1.412,00.




Segundo o IPEA, a alíquota máxima de desconto (14,2%) é atingida pelo grupo que recebe, em média, R$ 450 mil líquidos por ano: “A partir deste patamar, o imposto cobrado é menor entre os que têm ganho médio de mais de um milhão por ano, que é 13,6%”. Assim as duas faixas extremas de renda, a dos muito ricos e a dos muito pobres, são taxadas com a mesma alíquota (Valor, 30/10/24).

Esses números, porém, não levam mal-estar moral ou religioso ao que se pode chamar de consciência conservadora da classe dominante. Na última quarta-feira (30/10), por exemplo, a oligárquica Câmara dos Deputados rejeitou, por 262 x 136 votos, emenda apresentada pelo PSOL a um dos projetos da reforma tributária, que taxaria o conjunto de bens que ultrapassasse R$ 10 milhões.

Na caminhada para a terceira década do século XXI e 135 anos passados desde a vitória republicana e a implantação de uma democracia que se pretendia representativa, seguimos ostentando uma das maiores concentrações de renda do mundo. Segundo o Global Wealth Report 2024, o Brasil é o segundo país mais desigual entre os 56 analisados. Salvou-nos do gongo a África do Sul.

Ente nós o 1% mais rico detém cerca de 28,3% da renda total do país, colocando-nos entre os líderes globais nesse infame indicador. Os números põem a nu uma disfunção estrutural que só tende a agravar-se, pois permanecemos imunes aos avanços sociais reclamados. E se depender da aliança das burguesias financeira e agro-primário-exportadora com o atraso larvar, esse capitalismo – pai e mãe da injustiça social — poderá firmar-se como marca da história contemporânea.

A base do mando secular da classe dominante, a indicar a vitalidade insuspeitada do Brasil arcaico e retrógrado que se sobrepõe ao país que sonha com a modernidade, o desenvolvimento, a soberania e a democracia social. Um Brasil que, sugerem os números eleitorais deste ano, parece não estar ilhado nos grotões dos “coronéis” analisados por Victor Nunes Leal (Coronelismo, enxada e voto).

Uma análise rápida de nosso formação dirá que o cordão umbilical que nos ata ao passado renitente é o exercício da conciliação que, caminhando desde nossas origens coloniais, preside o ofício da política, em todas as suas instâncias.

O Brasil, sociedade estruturalmente dividida em classes, leva a paroxismos a desigualdade social, o império dos interesses do capital sobre a dignidade humana. No entanto, não se registram conflitos ou enfrentamento de classe, senão o avanço das milícias nas periferias de todo o país, e aparentemente as grandes massas (à míngua de nosso discurso) sancionam a política de seus adversários de classe e vida.

Na aparência somos, no capitalismo atrasado e dependente, uma sociedade em paz consigo mesma que realizou a comunhão entre oprimidos e opressores: uma especiosa sociedade de ‘uma só classe’, um país de ruas e praças sem multidões, sem povo mobilizado contra o que o oprime. É a nossa jabuticaba. Um pequeno contingente controla o capital e, a partir dele, controla tudo o mais: a economia, a política, os poderes da república, os valores sociais e culturais… E, por consequência , a ideologia da classe dominante se faz também a ideologia dos dominados. Inclusive em nosso campo.

Com o olhar voltado para para a ordem colonizadora, e particularmente para a guerra da Argélia e seus horrores,   escrevia Franz Fanon no final dos anos 50 do século passado: “A fraqueza clássica, quase congênita da consciência nacional dos países subdesenvolvidos não é somente a consequência da mutilação do homem colonizado pelo regime colonial. É também o resultado da presença da burguesia nacional, de sua indigência, da formação profundamente cosmopolita de seu espírito” (Os condenados da terra).

O governo Lula 3, limitado, pela dominância da ordem sobre o progresso, é levado a ceder na busca de um equilíbrio fiscal que pretende se explicar por si mesmo, como um dogma ou preceito de fé, ditado pelo Deus-mercado, o governante real. O dominado adota como sua a ideologia do dominante, e a promessa de um governo de centro-esquerda absorve o catecismo neoliberal, sem olhos para ver seu fracasso, de que nós mesmos somos o melhor exemplo.

Dir-se-á que é a vitória das circunstâncias sobre a vontade: nosso governo não é apenas nosso. Ao lado do presidente governa o poderoso Arthur Lira, procurador do Centrão, chefe siciliano de um Congresso reacionário no qual somos uma minoria sem força e muitas vezes carente de ânimo, o que realimenta as fantasias de composição e aliança. No terceiro andar do Palácio do Planalto também têm voz (ainda não fizemos a “revolução”) o grande capital, o agronegócio e o mau humor da caserna. Como fundo, a hostilidade da chamada grande imprensa, porta-voz do atraso.

Não se pode esquecer a influência desse quadro no processo eleitoral lastimado. Certamente nenhum observador da vida nacional cultivou dúvidas quanto às dificuldades que teria o terceiro mandado de Lula, porque elas foram anunciadas pela erosão das forças progressistas, principalmente a partir dos últimos tempos do primeiro mandato de Dilma, e sua difícil reeleição em 2014. Continuamos cegos e surdos mesmo diante dos idos de 2016 (por lembrar: o golpe-de Estado parlamentar  e o interregno do vice infame) e a emergência do capitão e seu séquito de generais e coronéis irresponsáveis.

Posto diante da intentona de janeiro de 2023, quando tínhamos tudo para avançar, o governo, em momento crucial do processo democrático, que pedia sua afirmação política e militar, optou pelo recuo. O que se segue são suas consequências.

A sustentação do governo – um meio quando se tem um fim claro à vista – toma o relevo requerido pelas circunstâncias: a ampla aliança que possibilitou a vitória eleitoral, de um lado; mas de outro, o fracasso dos partidos aliados nas eleições proporcionais e, por fim, os números da apertada vitória, anunciadora da derrota nas eleições deste ano, deitando justos temores sobre as eleições proporcionais e majoritárias de 2026. As primeiras projeções dos números eleitorais de hoje sugerem uma Câmara dos Deputados ainda mais reacionária que essa que aí está.   (Na  FSP de 31 deste mês lê-se o seguinte título de matéria estampada em sua página A-2: “Candidato de Lira para sua sucessão recebe apoio do PT de Lula e do PL de Bolsonaro”).
O Congresso acelera a tramitação de Emenda constitucional que visa a possibilitar a anistia para os criminosos do 8 de janeiro de 2023.

O projeto de país é necessariamente adiado. Governo e esquerda permanecem sem programa. Que sociedade queremos, afinal?

Desatento, o campo da esquerda mostra-se surpreso com os números das eleições municipais, e ainda não identificou seu papel no desastre. Tende a ver os números como fenômeno em si, desapartado do processo social.

A maioria das formulações se restringe ao registro do óbvio crescimento das direitas, mas retrocede quando se trata de discutir as razões desse avanço, claro pelo menos desde 2018. E se esquece, ainda mais, a esquerda, de que a direita avança sem resistência no território deixado vazio pelo seu recuo.

Recuo amplo, geral e irrestrito, porque se dá nos campos da ação e da organização como resultado do refluxo político-ideológico que se manifesta no abandono das favelas e periferias, no abandono da luta política, no esquecimento de suas teses fundadoras, por fim, no abandono da denúncia do capitalismo e na renúncia ao seu dever de contribuir para a educação das massas.

E, no entanto, ensimesmada na vã suposição de que sabe o que é melhor para o povo. Interpretando religiosamente a formulação marxista do “determinismo histórico”, pensa numa revolução que se fará por si mesma: bastaria, para isso, pôr-se “do lado certo da história”, o que quer que isso signifique.

Este é o ponto crucial da análise política que, se corajosa e honesta, pode sugerir uma revisão de procedimentos, e mesmo uma nova leitura da realidade, pondo em xeque algumas certezas e axiomas adotados sem reflexão.

O fato objetivo é que a domesticação e a “moderação” nos governos e na política, ademais de erro crasso severamente punido, não contribuíram para o sucesso eleitoral almejado. É o que nos dizem os números, em sua crueza. No plano político, a derrota é de igual porte, porque, por omissão, fomos também superados no campo de batalha dos valores e do imaginário.

O discurso antissistema, deixado por nós ao desalento, foi tomado de nosso campo e monopolizado pela extrema-direita, que assim se habilitou como leito da indignação das grandes massas. Foi assim que elas falaram. O outro lado de nossa inconsistência política é a quase unidade político-ideológica e programática das direitas.

A aparente pulverização de suas siglas e a disputa pelo espólio do capitão escondem a unidade política. Como lembra Maria Hermínia, “Minoritária no Brasil, ela [a extrema-direita) não é pequena nem irrelevante e é mais militante e engajada que a direita pragmática (“O lugar e a força da extrema-direita”, FSP).  Fica a questão: de que se alimentam a direita e a extrema-direita para engordarem tão rapidamente?

As eleições de 2022 não são obra do caso. A esfinge de Tebas, devoradora de homens, põe de lado o desafio das charadas e nos pergunta: por que o capitalismo, que fracassou como solução dos problemas colocados pela civilização, é o grande vitorioso de nosso tempo, e mais vitorioso ainda em países como o Brasil, onde as desgraças desse sistema se expõem o tempo todo, à luz do dia?

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