Uma joia em Guadalupe

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Na periferia do Rio, um cinema só de filmes brasileiros

Por Eryk Rocha, compartilhado de Piauí




Por volta de 9h30 de um sábado ensolarado de março de 2006 tomei um táxi na Zona Sul do Rio de Janeiro e fui ao bairro de Guadalupe, na Zona Norte, conhecer o Ponto Cine. O percurso é equivalente a cruzar várias cartografias sociais, como se o Rio fosse um mosaico de cidades, que vão se tornando cada vez mais áridas à medida que avançamos rumo ao subúrbio carioca.

Eu tinha muita curiosidade de conhecer o Ponto Cine, a única sala de cinema de rua de Guadalupe, um bairro imenso, com cerca de 48 mil habitantes, marcado pela pobreza e a violência. No Brasil, estima-se que 92% dos municípios não possuem cinema e, como todo mundo sabe, as periferias das capitais são desprovidas de atrações culturais, que se concentram nas áreas socialmente privilegiadas. O Ponto Cine é também uma das poucas salas abertas para a rua no país. Com a prevalência do cinema de shopping, os cinemas de rua foram dando lugar a estacionamentos, igrejas, farmácias ou supermercados.

Como se não bastassem essas qualidades, o Ponto Cine tem ainda uma distinção importante: ali só são exibidos filmes brasileiros, de todos os gêneros e estilos. E esse foi outro dos motivos que me levaram até lá: eu iria debater com o público o meu segundo longa-metragem, Intervalo Clandestino, um ensaio poético sobre o imaginário político por meio das reflexões de cidadãos comuns, no contexto da eleição de Lula em 2002. Foi filmado em boa parte nas periferias do Rio de Janeiro.

O convite do Ponto Cine me gerou certa apreensão. Será que haveria espectadores interessados no filme de um jovem diretor (eu estava com 28 anos), apresentado em horário matinal, num sábado?

Desembarquei do táxi em uma rua com numerosos vendedores ambulantes na calçada. Dentro de uma pequena galeria estava o local que eu procurava. Como a pessoa que me recepcionou no cinema me disse que ainda faltavam trinta minutos para acabar a sessão e começarmos o debate, decidi tomar um café em uma padaria ao lado.

Ao sair, reparei no letreiro da bilheteria do cinema informando o preço do ingresso: 4 reais. Na Zona Sul, a entrada para o mesmo filme custava mais que o dobro na época. Bem em frente ao cinema, um vendedor ambulante vendia DVDs de filmes norte-americanos, expostos no chão. Ele gritava: “Cinco reais, qualquer filme por 5 reais! Olha a promoção!”

Na padaria, pedi o café e fiquei observando a rua em volta. Foi quando notei o título do meu filme estampado na fachada da pequena galeria. Aquilo me deixou emocionado.

Voltei ao cinema. Para minha alegria, a sala de cerca de oitenta lugares estava lotada. Mediado por Adailton Medeiros, idealizador, produtor e curador do Ponto Cine, o debate, muito intenso e fértil, durou quase duas horas.

Após a conversa, Medeiros me contou sobre sua luta para criar uma sala de preço popular. Não à toa, o slogan do Ponto Cine é “Arroz, Feijão e Cinema”. A garra e a criatividade de Medeiros são admiráveis. Num mercado massivamente ocupado pelo cinema norte-americano, ele teve a ousadia e a coragem de se dedicar à exibição de filmes brasileiros, e vem assim formando um novo público.

O Ponto Cine tem dezesseis anos e sobreviveu graças à força do seu idealizador, de sua equipe, dos apoiadores e do público. Em 2018, sua programação de filmes, debates e oficinas teve que ser interrompida por seis meses, por causa do colapso social que se iniciou com o golpe de 2016 e a deposição de Dilma Rousseff. Depois, veio a pandemia, e o Ponto Cine precisou fechar as portas.

Há meses, Medeiros luta para obter um financiamento e reabrir o espaço. Procurou a prefeitura, e nada. Procurou entidades culturais, e nada. É terrível ver uma sala que se tornou uma referência real e simbólica para toda uma região e mesmo para o cinema brasileiro ser tratada com tamanha desconsideração.

Em 2010, retornei ao Ponto Cine com meu primeiro filme de ficção, Transeunte. Novamente, estávamos ali, Adailton e eu, debatendo com o público. Uma senhora de uns 70 anos, acompanhada do marido, levantou o braço e disse: “Gostei muito do seu filme, mas não entendi bem a história.” Então lhe perguntei: “Mas o que a senhora entendeu?” E ela me contou a história do filme de maneira precisa, tal como eu não tinha escutado ainda. Até hoje me lembro de seu nome, Maria, e de suas palavras ao dizer que estava emocionada porque, pela primeira vez, tinha visto um filme numa sala de cinema.

Quatro anos mais tarde, fui mais uma vez ao Ponto Cine, para apresentar meu sétimo longa, Campo de Jogo,e reencontrei Maria. Ela me disse que se tornara espectadora assídua do Ponto Cine, mas agora ia sozinha, pois seu marido tinha morrido.

Conto um pouco de minha história com o Ponto Cine porque esse é um local que muita gente não conhece e que está em constante risco de desaparecer. As ameaças são muitas e vêm também da guerra cultural travada pelo governo de extrema direita que desmontou importantes políticas públicas implantadas nas últimas décadas. Mas Adailton Medeiros é um bravo guerreiro. Ele diz: “A essa altura não vou desistir, não sei fazer outra coisa, essa é a minha paixão. Acredito que o cinema alimenta a alma das pessoas, fortalece a consciência e a memória de um país.”

O Ponto Cine está não apenas na minha memória, mas na memória de muitos realizadores e profissionais do cinema brasileiro que lá estiveram. E faz parte, principalmente, da memória coletiva das pessoas de Guadalupe. Num país como o nosso, numa cidade como o Rio de Janeiro, e nesse grave momento da história brasileira, um lugar assim é uma preciosidade que todos nós, fazedores de cinema e de cultura, temos a responsabilidade de manter vivo, aberto e em pleno movimento.

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