Por que Sérgio Moro pediu a prisão da cunhada do petista com base em uma falsa imagem e mantém livre a esposa de Cunha, titular de contas ilegais na Suíça?
Dada como foragida, Marice só soube das provas que pesavam contra ela dois dias depois, quando retornou ao país e se apresentou espontaneamente à Polícia Federal: o Ministério Público Federal (MPF) a identificou como a mulher que aparecia em imagens cedidas pelo Banco Itaú efetuando depósitos na conta de sua irmã, Giselda, em duas agências da capital paulista. Foi o suficiente para o juiz Sérgio Moro acatar a tese de que ela estaria ajudando Vaccari a lavar o dinheiro oriundo da corrupção.
No dia 20, o MPF chegou a pedir a conversão da sua prisão temporária em preventiva, para que ela ficasse detida por tempo indeterminado. “Tudo indica que Giselda [mulher de Vaccari] recebe uma espécie de ‘mesada’ de fonte ilícita paga pela investigada Marice, sendo que os pagamentos continuam sendo feitos até março de 2015. Nesse contexto, a prisão preventiva de Marice é imprescindível para a garantia da ordem pública e econômica, pois está provado que há risco concreto de reiteração delitiva”, sustentaram os procuradores.
Marice negava. Mas o juiz Sérgio Moro estendeu a prisão temporária dela, que vencia no dia 20, por mais cinco dias. Ele teve que voltar atrás no dia 23, liberar a investigada e reconhecer o erro primário: uma perícia feita pela PF comprovou que não era Marice que aparecia nas imagens, mas a própria Giselda. A frágil prova jurídica apresentada pelo MPF, acatada pelo juiz e amplamente divulgada pela imprensa caíra por terra. “Elas são muito parecidas”, desculparam-se procuradores e juiz.
Dois pesos e uma medida
Situação bem diversa vive a família do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), também acusado de envolvimento no mesmo esquema da Petrobrás, investigado pela mesma Operação Lava Jato. No dia 20 de agosto, a Procuradoria Geral da República (PGR) encaminhou ao Supremo Tribunal Federal (STF) um pedido de abertura de investigação contra o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), acusado de receber pelo menos US$ 5 milhões em propinas de uma empresa contratada pela estatal.
Na denúncia, a PGR pede que ele seja condenado por dois crimes de corrupção passiva e 60 operações de lavagem de dinheiro. Isso mesmo: 60 operações de lavagem de dinheiro. E não se tratam de depósitos fracionados em agências bancárias do Itaú, aqui mesmo no Brasil, mas de um esquema sofisticado que envolve contas em paraísos fiscais, empresas offshores e até a utilização de doações à igreja Assembleia de Deus de Madureira, no Rio de Janeiro, frequentada por Cunha.
Quatro das contas utilizadas por Cunha e seus familiares estão registradas no banco suíço Julius Baer. Três delas em nome de empresas offshores ligadas diretamente ao presidente da Câmara. Uma quarta aparece com o nome fantasia KOEK, mas um dossiê encaminhado pelo Ministério Público Suíço às autoridades brasileiras comprova que sua titular é a ex-apresentadora da TV Globo, Cláudia Cruz, esposa de Cunha. Uma das filhas do casal é registrada como dependente. Conforme o MP suíço, as quatro contas registraram entrada de cerca de R$ 31,2 milhões e saídas de R$ 15,8 milhões, entre 2007 e 2015, em valores corrigidos.
A conta movimentada por Cláudia vem sendo usada para sustentar, com o dinheiro da corrupção, alguns luxos pouco comuns à imensa maioria dos brasileiros. De janeiro de 2013 a abril de 2015, ela cobriu US$ 525 mil em débitos de um cartão de crédito. Outros US$ 316,5 mil foram destinados ao pagamento de um segundo cartão, em quatro anos. Uma famosa academia de tênis da Flórida, a IMG Academies, recebeu US$ 59,7 mil do montante. A família destinou US$ 8.400 à escola inglesa Malvern College e transferiu US$ 119,7 mil para a Fundacion Esade, da Espanha.
O processo contra Cunha foi parar no STF porque ele tem direito a foro privilegiado, o que não é o caso de Cláudia. As investigações contra ela, se é que já foram transformadas em denúncia, continuam na justiça comum, ou seja, nas mãos de Sérgio Moro, aquele rápido o suficiente para mandar prender a cunhada de Vaccari antes de saber se era ela, de fato, nas imagens que sustentavam a decisão.
O curioso é que mesmo com todas as provas enviadas ao Brasil pelas autoridades da Suíça, não se tem notícia de que ele sequer a tenha convocado para depor. Antes da PGR receber o dossiê do MP suíço sobre o casal, nenhuma acusação contra ela foi vazada para a imprensa. Será que o juiz que decretou a prisão da cunhada de Vaccari no afogadilho, com base em imagens que nem eram delas, não quer se arriscar a incomodar a mulher do poderoso chefe da Câmara?
Debate jurídico
Os erros, atropelos e excessos cometidos no âmbito da Operação Lava Jato têm suscitado um amplo debate jurídico no país. Há quem aplauda e quem condene o estilo do juiz Sérgio Moro de conduzir o processo. O que ninguém discorda é que – para usar um termo que se tornou bastante usual no mundo jurídico desde o chamado mensalão – ele esteja “inovando” em matéria legal. E o caráter seletivo de suas ações é, sem dúvida alguma, parte fundamental desta “inovação”.
Em palestra na capital norte-americana, no último dia 19, o presidente do STF, ministro Ricardo Lewandowski, declarou que a Lava Jato é uma “revolução” no país. “As investigações têm sido muito bem conduzidas. Nós temos algumas sentenças, sentenças muito duras, alguns dos altos executivos do Brasil já foram condenados a passar 15 ou 20 anos na cadeia. É realmente algo novo”, disse ele.
Mas há também quem conteste o estilo Moro. No dia 10 de outubro, em seminário promovido pela OAB, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Sebastião Reis, criticou duramente a banalização de uma das principais “inovações” introduzidas pela operação: a utilização da delação premiada como jamais visto antes no país. “A delação está sendo banalizada. Tem mais colaborador do que réus na ‘lava jato’”, afirmou.
Ele também destacou que o instrumento gera seletividade nas condenações. “O Estado está abrindo mão do direito de punir em troca da condenação de três, quatro pessoas”, ressaltou. E condenou o vazamento seletivo das delações para a imprensa que, segundo ele, prejudica a defesa dos citados e pressiona os juízes que atuam no caso a condenarem os acusados.
Uma pesquisa realizada pela revista Consultor Jurídico e divulgada no último dia 15 mostrou que todas as delações firmadas no âmbito da Lava Jato violam a Constituição e as leis penais. A revista analisou 23 acordos homologados por Moro e descobriu que eles preveem, por exemplo, que nem mesmo os advogados de defesa tenham acesso às transcrições dos depoimentos do delator, que ficam restritas ao Ministério Público Federal e ao juiz, o que viola o principio do contraditório e o direito à ampla defesa.
O estudo também mostra que os acordos impedem os delatores contestarem suas sentenças judicialmente, o que viola o direito de ação (artigo 5º, XXXV), que assegura que nenhuma lesão ou ameaça a direito pode ser excluída da apreciação do Judiciário. E ainda que, tal como o Ato Institucional nº 5, editado durante a ditadura militar, os acordos da Lava Jato vedam completamente aos réus a possibilidade de impetração de habeas corpus, entre outras críticas apontadas.
Operadores do direito têm criticado também a mão pesada e seletiva do juiz Sérgio Moro para determinar prisões, ainda que de forma diferente para os diferentes envolvidos, no país que vive o dilema de possuir a quarta maior população carcerária do mundo e desrespeita com frequência as garantias individuais previstas pela própria Constituição. Não por acaso, por conta da sua atuação na Lava Jato, Moro virou o garoto-propaganda de um projeto de lei apresentado pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) ao Senado que prevê a prisão de réus condenados em 2ª instância antes mesmo da conclusão do devido processo legal.
Em audiência pública realizada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) para debater a proposta, ele foi rechaçado por seus pares, que defenderam é possível avançar no combate à corrupção sem reduzir as garantias individuais previstas na Constituição. No debate, o juiz Rubens Casara, especialista em direito processual penal, que citou diretamente a Lava Jato ao operar suas críticas ao projeto defendido por Moro, lembrou que tanto no fascismo clássico italiano, quanto no nazismo alemão e no stalinismo soviético, a presunção de inocência foi relativizada.
O magistrado não tocou no episódio que envolveu Marice e nem em nenhum outro, mas sustentou que a presunção da inocência é importante porque os juízes erram muito e por motivos diversos. Entre eles, citou, inclusive, a pressão da mídia e o medo de serem tarimbados como “petralhas”. “Falta coragem para decidir contra a opinião pública, que muitas vezes não passa da opinião publicada pela imprensa”, ressaltou.
Elmir Duclerc Ramalho Junior, promotor na Bahia e professor de direito processual penal, reforçou que o projeto – inspirado na atuação de Moro na Lava Jato – está impregnado pelo autoritarismo. “Há uma tendência autoritária perigosa que lembra, sim, períodos autoritários da história da humanidade”, afirmou. Ele destacou que a população carcerária brasileira cresceu 16 vezes mais do que a população do país. “Não há malabarismo hermenêutico possível para dizer que não há a incorporação de um pensamento autoritário neste projeto”, disse.
Professor de Criminologia da Faculdade de Direito da USP, Maurício Stegemann Dieter fez uma das críticas mais agressivas ao projeto e ao seu garoto-propaganda. De acordo com ele, o projeto está centrado em uma espécie de “populismo midiático”, que dispensa o conhecimento científico para se calcar no senso comum. Ele lembrou que nunca se prendeu tanta gente na história do país, inclusive gente do andar de cima, como políticos e donos de empreiteiras. Por isso, ele classifica como delírio a premissa que embasa o projeto e o discurso de Moro: a de que o “Brasil é o país da impunidade”.
Um quase epílogo
No dia 20 de setembro passado, João Vaccari Neto foi condenado por Moro a 15 anos e quatro meses de prisão pelos crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e associação criminosa, pelo recebimento de pelo menos R$ 4,26 milhões em propina de contratos da Petrobras. Mas como os processos da Lava Jato correm em segredo de justiça e a imprensa só tem acesso ao que convém para seus condutores, ainda é difícil saber se há, de fato, provas contra Marice e Giselda, como sustentava o MPF em abril deste ano.
Pode ser que sim. A revista Veja, um dos veículos presenteados com vazamentos seletivos do processo, diz que, entre 2008 e 2014, entraram R$ 322,9 mil na conta de Giselda, em vários depósitos parcelados. Segundo O Estado de S. Paulo, outro destinatário dos vazamentos seletivos, Marice teria recebido, em dezembro de 2013, propina da empreiteira OAS, alvo da investigação sobre corrupção e desvios na Petrobrás. Mas ambos os veículos também disseram que Marice era a mulher que aparecia fazendo depósitos nas agências do Itaú. Então, fica difícil ter certeza de qualquer coisa.
Mesmo atolado em denúncias de corrupção, manobras e desmandos de todo tipo, Cunha continua presidindo a Câmara dos Deputados do país. É o segundo na linha de sucessão da presidenta Dilma Rousseff e o homem que irá decidir se o parlamento acolherá ou não seu pedido de impeachment, como pleiteia a oposição. O processo contra ele continua a tramitar no STF, agora sob sigilo. Partidos como o PSOL, Rede, PT e PSB já pediram a cassação do seu mandato, mas ele se recusa, inclusive, a deixar a presidência da Câmara. De Cláudia Cruz, não se tem nenhuma noticia. Continua livre, leve e solta.