E o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, na coluna “A César o que é de Cícero”, mostra seu lado sincrético ao abordar o 02 de fevereiro, Dia de Iemanjá, colocando em cena São Sebastião, São Jorge, Oxossi e Ogum. Ah, e “Maria de Iemanjá”, pois hoje se comemora a própria, como diz Dorival Caymmi, outro santo, Dia 2 de fevereiro / Dia de festa no mar / Eu quero ser o primeiro / A saudar Iemanjá.
Sincretismo de acordo com o dicionário: fusão de diferentes cultos ou doutrinas religiosas, com reinterpretação de seus elementos.
“Para a patota do Triunvirato, que há de me entender
Baixei.
Fiz a letra da canção “Maria de Iemanjá” há bastante tempo. Se duvidar, pra lá de vinte e cinco anos. Na época misturei o que li de Jorge Amado com o que vi dos Caminheiros da Verdade – centro espírita que minha mãe frequentava, além da Ramatis, da Igreja Católica, da Mesquita e da Sinagoga e do Frei Luiz.
Mamãe só não gostava de igreja evangélica. Segundo ela, se falava alto demais no estabelecimento, afinal, Deus não é surdo. “Meu ouvido não é penico” é frase prima-irmã de “Tu tá pensando que eu sou sócio da Light?”. Ainda assim, é bom dizer que há igrejas evangélicas e igrejas evangélicas. É que o mercado da fé é espaço propício para charlatães de toda a espécie.
Seja como for, por causa dos Caminheiros sempre tive predileção por São Sebastião, o santo vedete, que a depender da imagem, confesso, faz o tipo mesmo, e daí? É que por aquelas bandas da Abolição, no CECV (Centro Caminheiros da Verdade) havia uma imagem do Sebastian quase em tamanho natural e eu me afeiçoei a ela. Na verdade, era ali nos Caminheiros e no Mercadão de Madureira onde a gente esbarrava com as imagens de santos-entidades em tamanho natural.
No Mercadão, tinha uma em que o sujeito montado a cavalo era repartido em duas partes: em uma parte, ele era um soldado romano; na outra uma caveira. Para mim, a imagem é tão forte quanto o poema “traduzir-se” do Ferreira Gullar.
Só depois fui saber que na Bahia Ogum é San Sebastian. O que explica a velha imagem do meu anjo da guarda, um centurião romano que, acredite quem quiser, vi frente a frente umas três ou quatro vezes.
No Rio, San Sebatian é Oxóssi. Meu pai de vez em quando cantava o ponto que eu até hoje acho lindo:
“Quem é o cavaleiro
Que vem de Aruanda?
É Oxóssi e seu cavalo
Com seu chapéu de banda”
Enfim, me embrenhei demais num centro espírita de linha branca que fica perto da antiga Avenida Suburbana, atual Dom Hélder Câmara. Eu tenho saudade do Crush na garrafa cacarecada e no tijolo de doce de amendoim. Sou do tempo do pirulito Zorro no saquinho de doces de São Cosme e São Damião.
Eu sou do tempo em que havia um pratinho para se colocar moedas em frente a imagens de gente de pele vermelha em casas de Macumba. Eu via as imagens e não entendia por que elas estavam sempre sorrindo.
“Pra que entender tudo?”, pergunta meu coração. Na cidade de São Sebastião, muita gente é de Ogum, isto é, de São Jorge. Mas Ogum para mim é Sebastian e é a figura do Centurião que habita as labaredas e os labirintos.
A letra da minha canção tem participação do meu compadre, Zé Café, na época em que ele se dedicava às canções. Eu acho que é dele a segunda estrofe da letra. Além de uma correção na cor do elmo, que era amarelo. Uma olhadela na letra e se percebe que há uma forma de criar palavras: mar, amarelo, amarelo, elo; mar, maravilha, filha, maltrapilha; saudade, verdade, verde.
Uma combinação que se fez muito pela proximidade sonora, mais do que pela proximidade semântica. Foi o Zé Café quem fez a melodia da canção, que a tornou cantável, reproduzível, gravável, senão em um estúdio, pelo em estado de alma.
E eu, eu gosto de centro espírita? Gosto do cheiro da vela, do cheiro dos incensos, de algumas imagens, dos cantos e dos cânticos. A gente é o que come, o que fala, a gente é o que vela e revela.
Maria de Iemanjá (Zé Café / Cícero César)
Maria de Iemanjá
Vai levar a flor pro mar
Maria de Iemanjá
Vai levar a flor pro mar
Maria de Iemanjá
Vai levar a flor pro mar
Ocê sabe, meu rapaz
A oferenda ocê traz
Peixe na rede, no puçá
Deve renda de Iemanjá
Maria é mar maravilha
Filha maltrapilha do senhor
Azul de elmo furta-cor
Maria só me dá saudade
Na verdade do verde do mar
E quando venta lá na barra
Vai levar fita amarela
Pra valer a valentia
Do marido Ribamar
Maria de Iemanjá
Não tem jeito. Uma das funções do verso é facilitar a recordação, fazendo com que o texto venha à tona mais facilmente, para que saia do bico, da embocadura, do beco escuro onde moram as palavras nos lábios do labirinto. É hoje são dois de fevereiro, vai ferver lá na Bahia e aqui também.
Subi.”
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019), Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.