Por Regina Vater, via João Lopes, Facebook –
Não sei agora se quem me apresentou ao Fernando Peixoto foi o Maschio ou o Carlos Queiroz Telles. Mas recordo que quando cheguei em São Paulo, ele fazia parte do entourage de um bar-restaurante, o Riviera, que ficava na esquina da Consolação com a Paulista. Lá era o seu escritório. Os papos enfiando chope após chope eram longos e iluminantes. Em sua voz categórica Fernando, além de falar muito sobre Bertold Brecht, sua grande paixão, emendava pela política, principalmente a brasileira, desta para a cultura (sempre estava a par de tudo), e da cultura para os entendimentos da vida.
Ele e Queiroz eram muito amigos do Maurício Segall, na época casado com a Beatriz. Maurício patrocinava muitas das peças dirigidas pelo Fernando. Lembro de ir às sessões de cinema sobre o Brecht e sobre a Alemanha de 1918 que eles organizavam. Além disso, acompanhei vários ensaios das peças no Teatro São Pedro.
Mais outras séries de classes na universidade da vida…
O barzinho na Consolação fechou, mas continuei a encontrar o Fernando, ora através do Maschio, ora por meio da Esther Góis, que me convidavam aos ensaios que eu adorava assistir. Fascinante acompanhar o processo de criação de outro artista, principalmente quando uma cabeça tão estimulante quanto à do Fernando entrava em ação.
Em 1973, talvez por conta do sucesso da minha série NÓS (até Carlos Drummond havia escrito sobre ela), Fernando me procurou querendo marcar um encontro junto com o Ruy Guerra. A razão era que eles queriam que eu fizesse o design da capa do disco Calabar do Chico Buarque de Hollanda.
Não me lembro dos detalhes, mas parece que Fernando também estava envolvido com a montagem da peça.
O encontro se deu e frutificou. Dali em diante, Fernando me entregou nas mãos do Ruy, que passou a ser o meu diretor de arte. Nunca vi pessoa tão detalhista. Depois de muita discussão, ficou acertada a idéia para a capa externa: seria uma foto do nome Calabar pichado num velho muro.
Antes de cometer este crime numa parede decadente do Bexiga (era proibidíssimo fazer qualquer tipo de pichação naquela época), o Ruy Guerra me fez ensaiar várias vezes a caligrafia que ele achava mais adequada para a pichação. Mas sempre na dúvida se deveríamos pichar em caixa alta ou em caixa baixa. Mesmo depois de termos tirado as fotos, o Ruy me fez retocar (numa era pré-digitalizada) a foto escolhida para a capa, as letras da pichação. O que fiz muito a contragosto.
Das muitas fotos tiradas na ocasião, escolhi uma para presentear o Chico. Ele era tão incrivelmente tímido que quando lhe dei a foto me agradeceu baixinho num sorriso quase escondido:
– Obrigado pelo retrato!
Neste dia, (estávamos no Rio), havíamos nos encontrado no famoso “Final do Leblon”, barzinho que desapareceu para um McDonalds. Quando estávamos jantando no local, umas mulheres presentes reconheceram o Chico e foram de mesa em mesa recolhendo as flores dos vasos e com elas fabricaram um coroa com a qual se aproximaram e coroaram o Chico. Enrubecido, ele recebeu a homenagem como se fosse fabricada em chumbo. Quando elas se afastaram, ele comentou:
– Tem gente que agride até com flores…
Nunca mais vi o Chico pessoalmente, mas sinto até hoje o sabor da sua timidez um pouco desengonçada e hoje a entendo perfeitamente.
A capa do disco Calabar acabou sendo censurada. Saiu em branco. Quando recebi a notícia, eu já estava em Nova York. Soube do acontecido através do Silviano Santiago que tinha lido tudo na Veja. Parece que a censura implicou não só com o muro pichado, mas com o teor da capa de dentro (era uma capa dupla).
A idéia desta capa interna veio à minha cabeça certamente porque eu havia me alimentado muito das idéias brechtianas por meio do Fernando Peixoto.
A capa se abria para a foto de um baita e festivo pique-nique acontecendo numa rua deserta do centro do Rio. Compartilhado-o, um grupo de pessoas da classe média alta.
Para compor esta cena às sete da manhã de um domingo, convidei vários amigos e pessoas da família. Lembro que uma delas sugeriu que eu pedisse licença junto ao DETRAN. Ao que retruquei:
– Negativo! Eles vão implicar porque é para o Chico!
Chegando no lugar escolhido para a foto, avistei um policial e me dirigi a ele pedindo que me ajudasse a impedir que a presença de transeuntes interferisse no campo visual da foto a ser tirada (esta foto que eu dirigi foi tirada pelo Hugo Denizart e pelo Sergio da Mata).
O guardinha, então, perguntou:
– Pra que revista é?
– “Não é pra revista não. É para uma capa de disco.” respondi.
– “De quem? Posso saber?” perguntou ele.
– “Chico Buarque!” respondi.
– “Ah! Deixa comigo, eu vou pedir ao meu colega pra ele fechar a rua na esquina do lado de trás que eu fecho do lado de cá. Garanto que por aqui não passará ninguém, mas se sobrar algo no final do pique-nique, a senhora poderia deixar a gente levar pra casa?”
A polícia permitiu, a polícia censurou… as razões são pra serem lidas nas entrelinhas, não?